Um rosto de criança em Idlib

VATICANO E O MUNDO

Um rosto de criança em Idlib

Leio, em Português do Brasil, um dos muitos comentários sobre a situação catastrófica em Idlib, na Síria, e o seu reflexo na situação dos refugiados na Turquia e na Europa: “Começou uma corrida desesperada para a saída da província de Idlib, na Síria. (…) Havia esperança, este ano, que a crise dos migrantes na Europa pudesse diminuir. Agora, esse optimismo desapareceu, substituído por uma constatação preocupante: 2020 pode marcar uma nova crise de refugiados na Europa. É um facto que o Presidente da Turquia, Erdogan, deixou muito claro. Já abriga a maior população de refugiados do planeta – totalizando quase quatro milhões –, o seu país simplesmente não aguenta mais. Procurando evitar a onda de migrantes, ele fechou a fronteira com a Síria, mas a inexorável jornada dos refugiados para o norte continuará. Esse novo fardo dos migrantes não deve ser assumido apenas pela Turquia, afirmou o líder do país em 23 de Dezembro. Goste-se ou não, todos os países europeus terão que se esforçar ou sentir os seus efeitos negativos”.

O PODER DAS IMAGENS…

…ou o poder dos números? Por que meio é melhor informado o cidadão comum, nesta época em que a informação superabunda mas, como se sabe, está sujeita, como nunca, às múltiplas centrais da desinformação, públicas e privadas, cada uma defendendo interesses ocultos ou manifestos?

É evidente que o casamento feliz entre imagens fidedignas e estatísticas verídicas proporcionaria a base ideal para a informação a mais objectiva possível! Mas casamentos felizes vão rareando, ao que parece mesmo e sobretudo entre o que as estatísticas pretendem veicular e o que dos vídeos, das fotos, das imagens enfim, fica gravado na memória de cada um e serve de base para compreensão e interpretação da realidade.

Europa, a nova invasão dos bárbaros! E as extremas-direitas encontraram novo fôlego, nessa pretensa onda humana, demolidora da civilização do Velho Continente.

Como se sabe, desde 2015 a Europa vive o impacto no seu solo da chegada de milhares de refugiados do conflito sírio. E apontam-se números, reais ou imaginários, que ninguém pode confirmar.

Morrer no Mediterrâneo! Os barcos de fortuna naufragam, corpos são recuperados já sem vida, os contínuos episódios de tragédia sucedem-se com monótona regularidade diária, fazendo passar, quem segue as notícias pelos media, do desespero à quase indiferença, tal o efeito anestesiante da repetição.

Mas, de repente, uma só imagem, ou várias imagens mostram-nos um rosto de criança, em Aleppo ou em qualquer outro lugar da sacrificada terra síria, e a nossa curiosidade, o nosso interesse põem a imaginação a trabalhar. E as perguntas começam a surgir. Como será a vida daquela criança, da sua família, da sua comunidade, numa cidade constantemente bombardeada?

Como é possível viver naquelas condições? Quem afinal decide do destino último dos acontecimentos da guerra, para ter que responder perante uma instância internacional pelos crimes assim cometidos contra populações civis inocentes, quando o conflito acabar? Mas só os vencidos são julgados, não os vencedores, como a História tão bem tem demostrado.

A CAMINHO DE LADO NENHUM

Crianças imigrantes no papamobile, passeando com Francisco em torno da Praça de São Pedro. Lembram-se? Uma imagem que valeu como mil respostas à mensagem xenófoba de Matteo Salvini e seus companheiros da nova cruzada anti-imigrante, numa Itália já esquecida da sua triste História de há um século quase.

Depois a imagem do menino morto à beira-mar. Da criança símbolo de todos os que não conseguiram chegar à outra margem da esperança, â outra margem da vida. Ainda a força da imagem!

Mais recentemente, os rostos desesperados dos fugidos dos horrores de Idlib, os milhares que Erdogan orienta a caminho de uma Europa que não os quer. Milhares de vidas concretas destroçadas. E por contraste, a pérfida linguagem dos números.

No mundo da informação permanente que é hoje o nosso, invadido pela economia, pela demografia, pela climatologia, e por todas as “-ias” e por todos os “-ismos” que quisermos juntar ao cardápio das notícias, desde o despertar ao adormecer, a linguagem dos números tornou-se o idioma internacional de sábios reputados, de cientistas consagrados e de técnicos seríssimos. E os menos reputados, consagrados e seríssimos seguem-lhes o exemplo, para não parecer mal…

E com os números vêm os slides, com imagens mas sobretudo sem imagens a acentuada rispidez insanável das colunas e das equações.

Com efeito, não há exposição “profissional” sem números… e já agora sem gráficos, com muitas curvas ascendentes e descendentes, cujas trajectórias decidem do nosso destino, até do destino final! Há índices sobre natalidade e mortalidade, sanidade e morbilidade… há índices sobre tudo e para tudo, quase desde a média de espirros por constipação, à frequência de dores nos pés, quando se compram sapatos novos… apertados.

Acontece que por defeito, congénito ou adquirido, detesto números, assim como gráficos. E além deles, odeio particularmente notas de rodapé, sobretudo as que não se limitam a breves referências bibliográficas, mas rasgam janelas para a imensa cultura, real ou imaginada, do autor.

Talvez também por isso goste tanto do texto literário, corredio, sem viragens súbitas em qualquer alçapão de erudição intempestiva, só para o leitor escorregar e se atolar até aos joelhos… senão até ao queixo. A narrativa na ficção segue ligeira pelos caminhos da história imaginada, e o leitor lá se vai safando menos mal das elucubrações do escriba, mesmo quando, acordando mal disposto, este inicia novo capítulo com dezenas de páginas de descrição paisagista que não aquece nem arrefece para o desfecho da trama…

…imaginem bem se, remando contra florestas desertos ou montanhas inoportunas, o último vocábulo não me suscita algumas exclamações desesperadas, sintonizando assim a minha má disposição com a do autor.

MAS VOLTO AOS NÚMEROS…

…que esses é que, pelos vistos, estão na moda e dão seriedade a qualquer afirmação.

Pois tenho estado a matutar o quanto a linguagem dos números, com a sua pretensa transparência (pois não são eles que melhor precisam a dimensão, a proporção, a avaliação mais adequada da realidade?), é falsa, é obscura, é manipulável, e por tudo isso é perigosa!

Os políticos sabem da utilidade de lançar mão de números não verdadeiros e inverificáveis para impressionar, condicionar, obter adesão de opiniões públicas indefesas. E certo jornalismo, idem aspas, claro.

NEGAR A EVIDÊNCIA?

 Acredito que no pôr em causa a indispensabilidade dos números (em certos contextos determinados, entendamo-nos bem!) é que reside a sabedoria, e não no seu credo absoluto, sem nuances.

Então, poderá perguntar-se, que mensagens alternativas proponho, para se conhecer a realidade? Se não os números, se não as estatísticas, o quê?

É tempo de concluir esta minha tentativa de reflexão sobre tema que não é fácil… mas para o qual o simples estar-se desperto é já meio caminho andado para impedir a nossa manipulação livre e indefesa por outros.

Qualquer realidade expressa em números tem de ser contextualizada, correlacionada, explicada no seu significado relativo.

O que melhor traduz a realidade dos refugiados na Turquia e na Europa, hoje? Os números ou as imagens? As PESSOAS, não?

Carlos Frota

N.d.A.: Este texto não dispensa a consulta dos seguintes sites, nomeadamente, sobre as estatísticas de refugiados na Europa desde 2015: unhcr.org; rescue.org;eu.commission.eu

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