Unidos no tempo e na eternidade

Os Corações de Jesus e de Maria

Hoje, dia 3 de Junho, é a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, de quem aqui falámos há cerca de um ano. Amanhã, sábado, dia 4, temos o Memorial do Imaculado Coração de Maria. Mais do que solenidades, são momentos de referência devocional e de alegria, de contemplação e de singularidade eucarística. Maria, Mãe de Jesus e Mãe da Humanidade, assinala amanhã o seu Imaculado Coração, todo ele ardendo de amor divino, sublimado na pureza absoluta, trespassado por uma espada que mais não do que um apelo à experiência da dor-alegria. Esta festa remete pois de maneira directa, mas mistérica, para o Sagrado Coração de Jesus, porque Maria tudo dirige para seu Filho. Os Corações de Jesus e de Maria estão assim unidos no tempo, na fé, na eternidade…

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus existe provavelmente desde os primórdios da Igreja, desde que se meditava sobre o Lado aberto de Jesus e o Seu Coração trespassado, de onde saía água e sangue. Desse Coração sangrando nasceu a Igreja, por ele se abriram as portas da Salvação, conformaram os teólogos e doutores da Igreja, desde então. Até aos dias de hoje, o Coração de Jesus continua a estimular a fé e a devoção dos homens, o que nos recorda, nesse sentido, uma nota que o saudoso Papa São João Paulo II, numa carta de 1986 ao Prepósito Geral (superior maior) da Companhia de Jesus, padre Kolvenbach, SJ, teceu sobre a “verdadeira definição pedida pelo Coração do Salvador”: “Sobre as ruínas acumuladas pelo ódio e pela violência, edificar a tão desejada civilização do amor, o reino do Coração de Cristo”.

João Paulo II definia, neste apelo, a essência da importância do Sagrado Coração de Jesus, a de imperar quando se estabelecer a civilização do amor. Quando este substituir o ódio, quando as paixões e pulsões humanas de violência e destruição forem suplantadas pelo amor ao próximo como a Cristo. Estriba-se aqui um fundamento da alteridade, do respeito e apego ao próximo, aos seus direitos, por amor ao mais próximo de todos os próximos, ou seja, Cristo. Um fundamento, afinal, da importância do Sagrado Coração de Jesus, devoção que faz o amor vencer e substituir o ódio, a guerra, a destruição. Uma devoção reparadora. Se quisermos transpor esta reflexão de João Paulo II para a realidade, diríamos que só amor ao próximo, verdadeiro e em fé, poderá restaurar a ordem e paz do mundo corrompidas pela violência e pelo ódio. A retoma de uma justiça, de uma reparação social e humanista que é no fundo a essência da reparação e desagravo que o Sagrado Coração de Jesus potencia. “Amor solícito, amor satisfatório, amor vivificante”, esta é a síntese triádica do amor nos mistérios ocultos do Sagrado Coração de Jesus segundo João Paulo II, que o afirmou de viva voz no Angelus de 1 de Junho de 1984. Para uma civilização do Amor, alicerçada na dinâmica da caridade e da vontade de reparar e refazer o mundo.

 

O Imaculado Coração de Maria

Esta devoção não será tão antiga como do Sagrado Coração do Filho, pois só remonta ao séc. XVII, mas andam ambas a par. São consequência do movimento espiritual que procede de São João Eudes (1601-1680), o grande dinamizador moderno da antiga devoção do Sagrado Coração de Jesus. Há quem funde a devoção do Imaculado Coração de Maria na teologia marial de São Bernardo de Clairvaux, no séc. XII, ou nas revelações de Santa Gertrudes de Helfta ou Santa Matilde de Hackeborn, na Idade Média também, outros remetem apenas para as visões de Santa Margarida de Alacoque no séc. XVII, que São João Eudes depois difundiria. Certo é que nos finais do séc. XIVIII já a Ordem de Santo Agostinho tinha tornado a devoção célebre, porque muito implantada, na diocese de Roma.

O Papa Pio VII (1800-23) permitiu mesmo a celebração de uma Festa do Imaculado Coração de Maria em algumas igrejas, no Domingo da Oitava da Assunção, permissão que seria mais tarde renovada por Pio IX (1846-78). Mais tarde seria inscrita no calendário litúrgico universal, por instituição da mesma por parte de Pio XII, em 4 de Maio de 1944. O Sagrado (ou Imaculado) Coração de Maria é assim celebrado no sábado da terceira semana depois do Pentecostes, no dia seguinte à Solenidade do Sagrado Coração de Jesus. Anteriormente era a 22 de Agosto.

 

Fátima e o Imaculado Coração de Maria

É decisiva a importância do fenómeno de Fátima na afirmação desta devoção. A partir das Aparições de 1917, a devoção propagou-se e ganhou enorme vigor por todo o mundo. Em 1954 por exemplo o Papa Pio XII (1939-58) instituiu uma outra festa, a da Realeza da Bem-Aventurada Virgem Maria (festa a 22 de Agosto), com o intuito de que em cada ano se renovasse a consagração do mundo ao Coração Imaculado da Bem-Aventurada Virgem Maria. Em 1969, Paulo VI conferiu à festa do Sagrado Coração de Maria um estatuto de festa obrigatória. Antes, em 1950, Pio XII consagrara o mundo ao Sagrado Coração de Maria, no que seria confirmado mais tarde por João Paulo II e mais recentemente pelo Papa Francisco, por ocasião da celebração do Ano da Fé, em 2013 (a 13 de Outubro).

Fátima é com efeito importante também pelas revelações da Virgem nas suas Aparições, como aconteceu na terceira, quando comunicou a Lúcia que Nosso Senhor queria que se estabelecesse no mundo a devoção ao Coração Imaculado, para reparação dos acontecimentos trágicos e aniquiladores que decorriam no mundo: a Primeira Guerra Mundial, por exemplo. Para que houvesse Paz. As revelações aos Pastores assim clamam, através da veneração aos dois Sagrados Corações, o de Jesus e do Maria, com realce para este, como mediador junto do Filho. Pio XII, nas cerimónias solenes em celebração das Aparições de Fátima, em 1942, em fidelidade à mensagem daquelas, faria a primeira consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria, sublinhando o papel de Fátima na definição e universalização da devoção.

A misericórdia infinita de ambos os Sagrados Corações é uma nota a registar, como já São João Eudes afirmava, ao aclamar o seu alcance reparador. Neste Ano da Misericórdia, nesta semana em que Junho começa, temos pois aqui um caminho de reparação e reflexão, de paz e de caridade, de alteridade humanista.

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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