Após vários episódios que ainda hoje estão por esclarecer – e o mais certo é nunca virem a ser esclarecidos –, Portugal, pela pena do general Manuel António Vassalo e Silva, assinou às 20 horas e 30, de 19 de Dezembro de 1961, o “Instrumento de Rendição” que permitiu à República da Índia anexar o Estado de Goa e, por conseguinte, as possessões de Damão e Diu.
Desde então, volvidos mais de 63 anos, poucos são aqueles que podem afirmar conhecer a actual realidade de Goa, estando esta remetida para os livros de História. Os mais jovens em idade escolar ainda lêem acerca, mas depois rapidamente esquecem.
Ao entrarmos na Mansão Figueiredo, situada na pequena localidade de Loutolim, num ápice fazemos um resumo de tudo o que nos vai sendo dado a conhecer em Goa. É o linguajar das gentes locais, por vezes num Português antigo, mas correctíssimo, capaz de fazer corar o metropolitano mais culto; a arquitectura; os objectos de decoração e uso diário; os hábitos – como o café tomado em vários momentos do dia, os pastéis de nata, as queijadas de leite, e tantos outros exemplos da doçaria portuguesa –; a gastronomia; os bailaricos; o fado; e o conceito de “saudade”, também compreendido e sentido, pois que foi sendo herdado pelas gerações mais novas.
A receber-nos está a Senhora Dona Maria de Fátima Albuquerque, que com o filho gere, preserva e cuida da casa dos seus antepassados.
Foi devido a inúmeros episódios – vicissitudes, na sua maioria – que a Mansão Figueiredo caiu nos braços da nossa cicerone, como se de um órfão se tratasse. A mãe, senhora com pergaminhos em Goa, Lisboa e mais além, sentindo não ter mais forças para tratar da casa que a viu nascer, lá foi convencendo a filha que era chegada a hora de regressar às origens. Resultado: não tendo mais por onde protelar o inevitável, Maria de Fátima, com vida estabelecida numa das principais artérias de Lisboa e carreira reconhecida em marca internacional de produtos de beleza, arregaçou as mangas e potencializou um legado de séculos num dos mais belos hotéis do Estado de Goa.
Com toda a delicadeza, somos por si levados a conhecer a Mansão, tanto a parte destinada aos hóspedes como as alas reservadas à família. Se antes já havíamos sido surpreendidos com tudo o que o famoso e típico Bairro das Fontainhas nos permite observar, principalmente no exterior das casas antigas, agora somos definitivamente transportados para uma época que pensávamos estar irremediavelmente perdida. É que ao traço arquitectónico juntam-se milhares de objectos de diferentes décadas (para não dizer séculos), em que o espiritual é uma constante – o Catolicismo mais do que qualquer outra religião, ou não fosse Goa o Estado católico da Índia, mas o Hinduísmo está como que incrustado.
O que seria uma breve passagem para apresentação de cumprimentos, depressa se transformou numa longa conversa, durante a qual se foram descobrindo amigos em comum, com Macau em pano de fundo.
A verdade é que Goa fica no coração. Os dez dias que lá passámos permitiu aprender que ainda hoje persiste uma geração (envelhecida, é certo) que mantém a cultura portuguesa e que consegue transmitir e cativar o interesse dos mais novos por um Portugal que já não existe, enquanto potência administrativa, mas que se revela nas ruas.
Poucos dias depois de aterrarmos e por força do muito desvendado, chegámos à conclusão que Goa ajuda a melhor compreender Macau. De facto, o Padroado Português do Oriente, que teve sede em Velha Goa, moldou o material e o imaterial do território de Macau. Tal pode ser comprovado, por exemplo, na arquitectura indo-portuguesa, na gastronomia e na religião.
Uma pequena estória para terminar. Estando nós a espreitar para o interior de uma casa no centro de Panjim, a capital do Estado de Goa, somos interpelados por um senhor de provecta idade. Chama-se António Cardoso. De dentro do seu automóvel pergunta, em Inglês, se procuramos algo, e mesmo antes de respondermos diz que se trata de uma casa particular e que não está aberta ao público. Ao ouvir o nosso sotaque facilmente percebe que somos portugueses e conta-nos que nasceu em Goa e ali viveu toda a vida. «Estudei no Liceu! É aquele edifício grande e comprido que se vê no alto, quando estamos virados para a igreja matriz. O ensino era todo em Português e por isso sei falar. Também em minha casa só se falava Português», começa por contar, revelando de seguida: «Sou advogado. Ainda hoje exerço, mas não como dantes».
Quando pensávamos que a conversa estaria prestes a terminar, lança-nos um desafio: «A entrada desta casa é feita pelo largo da Casa do Governador. Segundo alguns historiadores, era a casa onde se transaccionavam os escravos. Se estiver lá alguém, peço para vos deixarem entrar». Chegados ao portão principal, um idoso passeia no pátio interior da casa. Informado sobre o nosso interesse, logo abre os portões de ferro e convida-nos a visitar um espaço místico. O desenho da casa é labiríntico, com inúmeros corredores ladeados por portas. Seriam as celas onde punham os escravos? Uma questão que não quisemos colocar, para não ferir susceptibilidades. «Esta casa terá mais de quatrocentos anos. Era dos nossos familiares», informa o ancião.
De regresso ao Largo da Casa do Governador, o causídico António convida-nos para um café. «Vamos ter com uns amigos com quem me encontro todos os dias para tomar café. Estudámos todos juntos no Liceu». O café fica num primeiro andar. À mesa, em Português, fala-se sobre tudo um pouco: política, futebol e de como as coisas já não são como eram. «Há muitos anos que discutimos entre nós qual a melhor palavra que devemos usar quando falamos da tomada de Goa pela Índia. “Invasão”, “libertação”, “anexação”. Qual será a mais correcta?», reiniciam desta forma um tema recorrente, sobre o qual é difícil haver um entendimento unânime.
Como não podia deixar de ser, perguntamos se praticam a fé católica. Acertamos na mouche, pois nesta matéria é proibida qualquer discordância. «Somos todos católicos! É uma herança quem vem dos nossos antepassados e que vai sendo transmitida aos mais novos», explica António, que nos deixa com um amargo de boca, embora o café bebido minutos antes até estivesse bem doce: «É pena que não esteja cá no Natal. É a nossa Festa mais importante. Todas as pessoas se envolvem nas decorações e nas celebrações. Há missas, procissões e bailes até tarde».
E por falar em bailes, uma breve nota: logo a seguir a poisarmos em Panjim, fomos convidados para uma festa de Natal no Clube Vasco da Gama. A organização esteve a cargo da Associação Sociedade de Amizade Indo-Portuguesa, cuja actual presidente foi recentemente condecorada pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. As mesas foram poucas para tanta gente. Tudo foi português, pois que até Nossa Senhora (de Fátima?) foi colocada em destaque, como se estivesse a abençoar a festa.
Em breve havemos de voltar. Fica a promessa.
José Miguel Encarnação esteve em Goa com a colaboração da Fundação Oriente