Tradição, Magistério, Transmissão

Os Padres da Igreja

O título de Padre da Igreja logo nos alvores do Cristianismo serviu para designar os bispos e outros dignitários como testemunhas da sucessão apostólica e guardiães da tradição da Igreja. A partir do século IV, entre Constantino e Teodósio, o sentido do termo alarga-se numa abrangência mais intelectual, para designar os grandes autores eclesiásticos dos primeiros séculos, assim considerados como autoridades em matéria de doutrina, ao mesmo tempo que eram parte importante da tradição e seu fundamento inquestionável. Era o que se designava também por “Consenso dos Padres”. Refira-se, em jeito de esclarecimento prévio, que a Patrística é o conjunto dos estudos dos escritos dos Padres da Igreja.

Com efeito, de acordo com a Tradição católica, os Padres da Igreja, ou “Santos Padres”, têm como características fundamentais a sua ortodoxia em termos de doutrina, as suas vidas em santidade e exemplo, longa quase sempre, recolhida e despojada, por vezes coroada pelo martírio, além do seu vínculo forte à Igreja. A sua intelectualidade é também uma marca identitária. Na Época Moderna, com o aparecimento – e sequente desenvolvimento – de uma autêntica “ciência patrística” pôde-se definir aquilo que se designa por “Cânone Patrístico”, fixado, na Igreja Católica Apostólica Romana, ou do Ocidente, no período que vai do século II (segunda geração depois dos Apóstolos), a partir de São Clemente de Roma (morre em 102), até São Isidoro de Sevilha (560-636) e, no Oriente, com São João Damasceno (655-750). Os critérios de definição destas cronologias assentam mais em pressupostos confessionais do que históricos, pelo que a chamada “ortodoxia” (não necessariamente as Igrejas ditas ortodoxas) não se revê nestas “balizas cronológicas” pois considera os ensinamentos dos Padres da Igreja como uma característica constante, plena e de todo sempre, da vida da Igreja.

Tradição é uma palavra de origem latina, “traditio”, que significa “transmissão” ou “remissão”, assumindo na Igreja Católica uma dimensão fundadora, com todo o significado teológico, espiritual e histórico do conceito para o Cristianismo. A partir do século II a Tradição é entendida, e definida, pela Igreja como a transmissão da Revelação de Deus comunicada por Jesus Cristo a Pedro, enquanto primeiro bispo, o qual, como elo da mesma Tradição, a transmite, na sua sucessão, aos bispos que lhe sucederam. Os Protestantes, por seu turno, defendem a transmissão directa, ou seja, da palavra de Deus revelada na Bíblia, sem intermediação de ministros ou bispos, mitigando assim o valor da Tradição e do seu processo teológico, doutrinal e histórico. Na Igreja Católica, para além da fonte inicial a partir de Jesus e de Pedro e sua sucessão, acrescentaram-se, ao longo da história, toda a produção doutrinária dos sucessivos concílios ecuménicos, para além, naturalmente, dos ensinamentos e testemunhos dos Padres da Igreja, estribados, em termos de garantia do seu valor doutrinário, no seu magistério e na tradição que neles se assume como referência.

Eusébio de Cesareia (265-340), tido como o fundador da historiografia da Igreja, fez a primeira recolha ampla de dados e informações sobre diversas personalidades importantes na história da Igreja, as quais incluiu na sua “História Eclesiástica”. São Jerónimo (347-420) acabará por ser o verdadeiro e definitivo impulsionador da elencagem e estudo dos Padres da Igreja, de que ele seria também uma das suas mais importantes e nomeadas figuras. A sua obra inclui, na sua listagem desses Padres, 135 notícias sobre essas personalidades, de Pedro a ele próprio, aliás. Genádio de Marselha (morreu em 496), na sua “De Viris Illustribus” (Dos Homens Ilustres), homónima da obra de São Jerónimo, à qual acrescenta noventa novas referências à “lista”. Naqueles primórdios do Cristianismo era grande o desejo de se definir e estabelecer uma sucessão de figuras eclesiásticas ilustres e proeminentes, ou seja, uma lista de Padres da Igreja que pudesse sobrepor-se às listagens de biografias heróicas elaboradas entre os pagãos por Plutarco (46-127), além da exigência de elaboração de uma prosopografia (descrição biográfica de personalidades) eclesiástica.

Nomeiam-se entre os Padres da Igreja, no Ocidente como no Oriente, quatro padres “maiores”, também designados como Doutores da Igreja. No Ocidente temos Ambrósio de Milão (340-397), Jerónimo [de Estridão] (347-420), Agostinho de Hipona (354-430) e Gregório Magno, Papa (540-604). No Oriente surgem Basílio de Cesareia (329-379), Atanásio de Alexandria (296-373), Gregório Nazianzeno (329-389) e João Crisóstomo (347-407).

Gregos ou latinos, estes homens ilustraram-se pela sua defesa e fundamentação doutrinal, como pilares da fé, além do exemplo de santidade e preclaridade, pelos seus escritos testemunhos e pela sua sólida exegese das Escrituras. A sua teologia e pensamento cristão são corroborantes coerentes, no seu todo, devido à sua ortodoxia, à sua tradição e consolidação litúrgica. O seu caminho foi o da sequência do que foi trilhado e definido pelos Apóstolos, dos quais são testemunhos e ecos. Foram também notáveis apologetas, ou seja, defenderam a Igreja perante ataques e perseguições, deram repostas a questões e dificuldades, de ordem moral ou teológica, numa época de definição do Cristianismo, de dúvidas mas também no meio de convulsões, externas mas também internas, dissidências ou desvios heréticos, cismas e conflitos ideológicos.

Os Apologetas, ou Apologistas, foram Padres muito importantes, particularmente a partir de fins do século III, quando a memória e testemunho dos Apóstolos ou dos primeiros Padres Apostólicos começava a ser distante, com as perseguições ao rubro e os debates com intelectuais não cristãos também a serem acesos. Justino, Irineu de Lyon, Tertuliano, Cipriano, Orígenes ou Luciano são alguns dos mais destacados Padres da Apologética.

O termo “Padres” provém das palavras de um desses Padres, precisamente: São Basílio, quando falava do que “se aprendera com os Padres”. De recordar também os Padres do Deserto, não tão grandes teólogos ou intelectuais mas determinantes para o monaquismo, criando Tebaidas e lauras de eremitas, anacoretas e cenobitas que estão na origem das formas de vida consagrada e das suas Regras, São Pacómio ou São António o Grande (ou Antão).

Vítor Teixeira

Universidade de São José

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