A magnífica descrição bíblica do encontro de Paulo de Tarso com Jesus, na estrada de Damasco, narra o chamamento do mais improvável dos futuros seguidores da Via, Paulo, pelo mais imprevisível dos deuses, o Deus de Abraão, de Moisés, de Jacob e do Messias.
E do Messias. Que cega Paulo por três dias, para este poder ver melhor, quando os seus olhos se abrem, de novo, para a luz do dia.
E movido por uma loucura que só a nova visão permite explicar, o cidadão romano despe as roupagens do seu poder, da sua respeitabilidade social, da sua aceitação pelos homens grandes da comunidade.
E junta-se à seita desse obscuro Nazareno, herói popular de maravilhosos milagres, mas estranho, perigoso, subversivo mesmo, para a elite judaica do seu tempo. O seu fim conhece-se. E também o que resultou de dois mil anos de espera pelo seu regresso.
Inspiração para milhões e insensatez para não poucos, Ele é o herói do que se vai seguir.
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Ocorreu-me a história desse encontro surpreendente da estrada de Damasco, ao terminar a leitura de uma autobiografia notável, escrita por um jovem palestino, militante de um dos mais extremistas dos movimentos islâmicos, o que domina desde há anos a Faixa de Gaza.
A narrativa de Mosab Hussein Yousef tem por titulo, inequivocamente, “Filho do Hamas”, para estribar na luta contra a ocupação da sua terra tudo o que bebeu (valores, afectos e a compreensão do mundo), através da sua vivência no movimento clandestino que contra tal ocupação lutou e luta.
O livro conta a história da sua militância a favor da causa palestina, pois: dos ataques terroristas em que participou, das inúmeras vezes em que esteve na prisão e foi torturado pelos israelitas, no modo como começou a ver no Outro (no seu caso, os judeus) não inimigos mas pessoas como ele. Com crenças, com receios, com fraquezas e o mesmo desejo de paz.
A certa altura do seu percurso, sobrepõe-se à militância uma profunda busca espiritual, isto é, o desejo de compreender tudo, para além da sua circunstância.
Um encontro casual com cristãos leva-o ao estudo da Bíblia. E na procura a que o motiva a sua nova liberdade interior – encontra Deus.
Mas encontra um outro Deus.
Não o Deus vingativo, a que o habituaram pela educação corânica – e que inspira, segundo ele, toda uma sociedade, a sua, a do Hamas, construída no ódio ao outro, e aos seus próprios – mas um Deus do bem, do perdão, da reconciliação.
E o jovem palestino encontra Aquele que Paulo não pôde também evitar, na estrada de Damasco.
Mosab teve que percorrer também a sua própria estrada de Damasco.
Não se transformou todavia em nenhum profeta, como ele próprio sublinha ao terminar a sua narrativa. Vive anonimamente algures, tentando orientar-se no quotidiano de uma existência comum, com o melhor dos mandamentos: não odiar ninguém e amar mesmo os seus inimigos. Enorme desafio e responsabilidade!
Este fim do livro transforma-o de uma possível história da carochinha, tema de propaganda para as conversões cruzadas, com que as diferentes religiões se degladiam via Internet, mas uma narrativa real.
Não há um fim para esta história. O último capítulo é já o primeiro de uma outra narrativa, a da luta de cada um para permanecer fiel àquilo em que acredita…
Um regresso aguardado
O Papa irá a Havana, leio na Comunicação Social, a caminho dos Estados Unidos, em Outubro. O homem das vestes brancas será o terceiro Chefe da Igreja Católica, em pouco mais de um quarto de século, a aceder ao palanque do aeroporto internacional da capital cubana, para ouvir os hinos nacionais e ouvir e proferir os discursos de boas vindas.
Raúl Castro acolherá Francisco. E o Papa irá marcar, com a sua presença, o fim de uma época e o princípio de outra, transição que pela sua discreta mediação se está a concretizar.
A Cuba idealista (e idealizada) da revolução dos pobres e dos deserdados dará, em breve, lugar à Cuba dos especuladores imobiliários e das grandes famílias que regressarão em fanfarra, para reclamar o que lhes pertence.
E haverá negócios e haverá dinheiro e hotéis de luxo e mansões privadas. E o sol a jorros, para bronzear a cútis de quem faz férias e a pele sofrida de quem trabalha.
Se há um sinal de alerta, a antever na próxima visita do Papa, esse não poderá deixar de ser, creio, o pedido também discreto de que ousem os cubanos fazer diferente, para que o passado tenha valido a pena.
É que a invasão que se aproxima não se deterá em nenhuma Baía dos Porcos …
O perigoso veneno da fama
Ler a realidade de outro modo. Decifrar no que vai acontecendo os sinais evidentes de um outro sentido para a vida. É esta uma navegação a que todos somos convidados, e não podemos evitar, se não queremos naufragar no absurdo do quotidiano.
Por vezes, a história obscura vale mais do que uma visita hiper-publicitada de Chefe de Estado, qualquer que ele seja.
Por vezes… é preciso cavar fundo para descobrir o que a superfície não mostra.
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Sawyer Sweeten, o gémeo de Sullivan numa série televisiva americana famosa, com o título “Toda a gente gosta do Raymond”, suicidou-se com vinte anos incompletos.
Celebridade da televisão, com o irmão, desde os dezasseis meses de idade (!!!) não terá suportado a exposição permanente ao olhar dos outros, à atenção do público, à privação do seu jardim secreto, onde plantar as sementes do seu próprio crescimento como pessoa.
Carlos Frota
Universidade de São José