Testemunhos de alguns religiosos locais
Parte substancial da vasta área afectada pelo terramoto de Kahramanmaras – o equivalente ao território da Hungria ou de Portugal continental, por exemplo – situa-se em terra síria. Região, precisamente, há muito assolada por todo o tipo de violências e desagravos e que, ironicamente, aguardava decisiva investida terrestre por parte das forças turcas, que há anos ocupam as faixas fronteiriças. Bombardeamentos aéreos, ataques com “drones” e tiros de artilharia têm visado as fundamentais cidades curdas de Hassaké e Qamishli, além de diversas outras de menor importância nas províncias de Aleppo, Raqqa e Deir ez-Zor.
Ancara tem vindo a justificar tais actos de interferência em terra alheia pela necessidade de combater os rebeldes curdos acoitados na agora designada Administração Autónoma do Nordeste da Síria, liderada pelas Forças Democráticas Sírias (SDF), no fundo, uma aliança de milícias constituída essencialmente por curdos, mas que conta nas suas fileiras com árabes, assírios, arménios e circassianos, e até turcos dissidentes.
Este cenário de dor e sofrimento, resultado da destruição de infraestruturas fundamentais, como o abastecimento de água e de electricidade, alvos preferidos dos projécteis otomanos, sempre o tem recordado o Patriarcado Católico Arménio, que durante o passado Advento lançou um apelo à oração na esperança que o “Salvador vindouro, Jesus” trouxesse também a paz e “o fim do sofrimento e do perigo à população do Nordeste da Síria”. Isto quando, poucos dias antes, em Hassaké, um ataque a uma refinaria de gás causara um incêndio colossal, matando e ferindo diversos trabalhadores, e os bombardeamentos com “drones” ao campo de refugiados de El-Hol permitira a fuga de dezenas de detidos jihadistas ligados ao Estado Islâmico.
Ora, a este sofrimento generalizado do dia-a-dia sobreveio agora um outro de não menor dimensão – antes pelo contrário – numa paisagem há muito martirizada. O terramoto do passado dia 6, magnitude 7,8 na escala Richter, foi o mais violento em oito centúrias.
Antoine Audo, bispo caldeu de Aleppo, alertou para a importância de, «agora mais do que nunca», a Igreja acercar-se das pessoas, naturalmente aterrorizadas pois se defrontam com um tipo de desastre ao qual não estavam acostumadas. «Depois de doze anos de guerra, esta foi mais uma tremenda bomba, letal e desconhecida, que caiu sobre nós», comentou o prelado à agência FIDES. Audo informou que o arcebispo melquita (greco-católico) Georges Masri fora retirado vivo dos escombros, mas o seu vigário ainda não havia sido encontrado.
Também o padre melquita Fadi Najjar enfrentou a morte e a devastação: «Até agora mal conseguimos dormir. A cada hora que passa recebemos mais e mais sobreviventes nas nossas paróquias», confidenciou à CATHOLIC NEWS AGENCY. Najjar, de quarenta anos, ministra a igreja de São Miguel, em Aleppo, onde atende cerca de duzentas famílias, e administra a escola Al-Inaya, frequentada por mais de trezentos alunos. Também é líder do movimento “Christian Student Youth”. «Perdemos um padre da nossa comunidade. O medo impera. Não sabemos exactamente o que fazer», acrescentou. A procura por ajuda é tal que Najjar e alguns dos seus paroquianos viram-se obrigados a resgatar pessoas dos escombros: «mal podíamos acreditar no que estava a acontecer». As expectativas, longe de melhorar, pioraram: «Está muito frio, chove há seis dias, o panorama agrava-se». O seu apelo final: «Juntem-se em oração, por favor; orem por nós, por favor».
Também do Norte da Turquia nos deram notícias os homens do Clero. O bispo Paolo Bizzeti, Vigário Apostólico da Anatólia, informou que a catedral de Iskenderun desabou, assim como inúmeras igrejas das comunidades sírio-ortodoxas e ortodoxas daquela cidade. Porém, os relatos mais dramáticos chegam de Antakya, a antiga Antioquia de Orontes, hoje integrada no sudoeste da província turca de Hatay.
«Edifícios inteiros desabaram, mesquitas e igrejas foram aniquiladas. Está um frio de rachar, não há luz, não há água, os fornos de pão foram destruídos, as lojas estão fechadas. As ruas, cheias de escombros, estão intransitáveis até para as viaturas de salvamento. Disseram-me que pelo menos metade da cidade está destruída ou sofreu danos graves, sobretudo na parte mais antiga», disse à agência FIDES o padre Domenico Bertogli, 86 anos, frade capuchinho nascido em Modena, e que desde o final da década de 1980 até 2022 serviu como pároco da comunidade católica local. Felizmente a casa paroquial, «como é um edifício baixo», resistiu aos sucessivos abalos. Não tiveram a mesma sorte as grandes mesquitas da cidade nem a igreja ortodoxa ou a protestante. De portas abertas, a casa paroquial acolhe agora as famílias deslocadas que vivem nas proximidades. «Sentem-se aqui mais seguras, pois o nosso jardim é uma rota de fuga imediatamente acessível, em caso de novos abalos».
A casa paroquial de São Pedro e São Paulo é uma criação do padre Domenico, já com muitos anos, numa cidade pejada de memórias associadas à pregação apostólica primitiva. No fundo, trata-se de duas velhas casas em ruínas que foram restauradas, no antigo bairro judeu, onde presumivelmente se erguiam as moradias dos primeiros cristãos da cidade. Terminada a obra, o frade gravou na pedra acima da porta a inscrição: “Igreja Católica Turca”.
Antioquia ocupa um importante lugar na História do Cristianismo, pois foi aí que Paulo de Tarso (São Paulo) pregou o seu primeiro sermão, curiosamente no interior de uma sinagoga. Também em Antioquia foram os seguidores de Jesus chamados pela primeira vez de cristãos.
Joaquim Magalhães de Castro
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