Tão curta vida para tantas virtudes
Tão jovem, tão recolhida, tão humilde, mas tão lutadora, influente, determinante e verdadeiramente importante, Catarina, dita de Siena, religiosa terciária dominicana, emerge no seu tempo como uma nova face da santidade no feminino, cristocêntrica, arrebatada, mas pragmática e activa. Poucos, em tão pouco tempo activo, ou “útil”, de vida, em época tão conturbada e perante problemas tão grandes, nesta mudança de mentalidades e de eixos na Cristandade coeva, conseguiram tanto ou foram tão exemplares e decisivos. E raramente alguém – para mais mulher, no século XIV – tão novo, tão recolhido e humilde, marcou tão sobremaneira um contexto imaterial e até histórico como Catarina.
Virgem e Doutora da Igreja, padroeira de Itália (desde 1866), esta santa italiana, de vida efémera (1347-80), com festa litúrgica a 29 de Abril, não deixa mesmo de ser uma gigante da santidade e da exemplaridade no seu tempo, como a posteriori. Nasceu em 25 de Março de 1347, em Siena, vindo a falecer, com 33 anos, a 29 de Abril, em Roma. Nasceu no primeiro ano da Peste Negra, terrível flagelo pestífero que dizimou mais de um terço da população da Europa. Esse era o flagelo da vida material, humano, de sofrimento, que mudaria o rosto da Europa. Mas outro emergia, fracturante, dilacerante, ameaçador, indelevelmente ligado ao destino da Cristandade, para sempre. Com ondas de choque no imediato temporal e no devir histórico que precipitariam o Outono da Idade Média, quando se almejava já pela Primavera dos novos tempos.
Catarina foi uma das flores que surgiu no vergel cristão, a anunciar essa primavera, que começo de forma invisível, no plano da fé, para depois se verter na marcha das civilizações, no século XV do princípio do Renascimento, antes do século da viragem, o século XVI, em que novos mundos se mostrariam ao Velho Mundo. Mas que outro flagelo foi esse afinal?
Falamos do Cisma do Ocidente, em que a Igreja ocidental se fendeu, em que se abateu sobre a Cristandade a fractura, a divisão, um rebanho às ordens de dois pastores, ou até mais, criando confusão, decadência, exacerbando diferenças e criando sementes de indisciplina, heresia e deriva teológica. Com efeito, entre 1309 e 1377, a residência do Papado foi alterada da Roma petrina para Avinhão, na França, pois o Papa Clemente V foi forçado pelo rei francês a residir naquela cidade. O Trono de Pedro, catorze séculos depois, estava vago, mas existindo Papa, só que a residir noutra terra, contra a tradição, para confusão dos fiéis, desnorte das instituições, fractura das obediências, facções, lutas. Em 1378, contudo, o Papa Gregório XI (1370-80), francês de origem, voltaria para Roma, onde faleceria nesse ano, abrindo o início do Cisma do Ocidente, que duraria até 1417. Voltou para Roma, mesmo sendo francês, graças à jovem religiosa, enclausurada, humilde, simples, de seu nome Catarina, dita de Siena.
Por aqui se adivinha a influência e determinação de Catarina, como a da sua homónima, c. 1000 anos antes, virgem e mártir, Catarina de Alexandria. A santa de Siena foi também uma das mulheres mais notáveis da história. A sua vida começou de forma difícil, todavia. Catarina di Giacomo di Benincasa nasceu numa Siena devastada pela Peste Negra, como já aludimos, sendo filha de Giacomo di Benincasa, tintureiro, e Lapa Piagenti, um casal humilde. Lapa tinha cerca de quarenta anos quando deu à luz, prematuramente, as gémeas Catarina e Joana. Já tinha tido 22 filhos até então, embora mais de metade desses teria morrido. Catarina, amamentada pela mãe, sobreviveu. Ainda nasceria uma irmã mais nova, também Joana, dois anos depois (25º filho de Lapa!). Pais piedosos, trabalhadores, uma família numerosa, ao que tudo indica coesa, eis o alfobre onde se plantou a santidade da jovem Catarina, que se consagrou bem cedo, de forma privada. Precoce vida virtuosa, de humildade, negação da vontade e da vaidade, caridade e serviço do Outro, assim irrompe Catarina na sua vida cristã. Ainda que a tivessem destinado ao matrimónio, contra isso lutara, animada por visões místicas de Cristo desde a infância e determinada a seguir uma vida consagrada.
Aos 18 anos, depois de lutas e resistências familiares, recebe finalmente o hábito branco e negro da Terceira Ordem de S. Domingos, embora tenha sido a primeira mulher solteira a entrar na Ordem, destinada a terceiras seculares, casadas. Enclausura-se, em oração e mortificação, durante três anos, apenas falando com Deus e o seu confessor (S. Raimundo de Cápua, OP, ambos reformadores da Ordem dos Pregadores, ou Dominicanos). Nesse período, revela que terá contraído esponsais místicos com Jesus, numa visão que se tornou famosa em termos de ascese e êxtase. A sua dimensão crística naturalmente teve uma adesão ao Outro, ao mitigar do sofrimento e da dor, à vida activa da caridade e assistência, como várias vezes demonstrou depois daqueles três anos de contemplação. Um serviço ao Próximo que esmaltava com orações e sacrifícios, operando milagres, profetizando e conciliando.
Papas, hierarquia da Igreja, nobres, povos, todos os que dela se aproximaram, manifestaram melhor ficarem desde então, por isso tantos acorriam a Catarina cada vez mais. A mulher do “amor total a Deus” era famosa, percorreu Florença, Lucca, a Toscânia, até receber em Pisa, em 1375, os Estigmas da Paixão de Cristo, símbolo da sua adesão total e da sua própria paixão e “imitação” de Jesus, como já antes S. Francisco de Assis experimentara. Pelo meio, uniu facções opostas ou em beligerância, mediou conflitos, superou intrigas, foi até Avinhão tentar convencer Gregório XI a mudar-se para Roma, enquanto lhe enviava missivas nesse sentido. Aquele Papa morreria em Roma, sucedendo-lhe Urbano VI, contra o qual elegeram Clemente VII, rebentando o Cisma do Ocidente, corria o ano de 1378. Catarina escreveu cartas a reis, príncipes, exortando-os a renunciar ao Cisma, como fez também junto dos Cardeais e até de Urbano VI.
Mas a sua saúde era débil, enfraquecia, esgotada de labor, exaurida pelas mortificações e pela sua ascese radical, que lhe consumia a vida, mas exornando santidade e preclaridade. Morreria de ataque súbito em Roma, com 33 anos e 364 cartas escritas, em 1380. O que fez com que Paulo VI a tornasse Doutora da Igreja em 1970. Porque santa, foi sempre, no verdadeiro sentido da palavra.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa