O CLARIM publica esta semana a segunda e última parte do conto “Rua da Senhora Dona Ilda”, da autoria de Jerónimo Santos, classificado em segundo lugar na edição de 2020 do concurso “O Outro Lado da Escrita”, organizado pela Associação Sindical dos Juízes Portugueses. Os contos dos três primeiros classificados foram entretanto compilados no livro “Tribunal de Contos” (edição Almedina), já à venda!
Já quase ao lusco-fusco, foi, levemente e sem indícios, notada a ausência de Mangelino nas redondezas do casebre. Assunto sem importância que a questão principal do cochicho do povo não relegasse na suposição que se tratava de desanuviar. E assim foi. Mangelino deambulou na sua pacatez até aos Linhares, zona do povo de terras fundas e férteis, hortas e lameiros onde floresciam junto aos regatos árvores diversas, freixos e salgueiros em abundância. Muito próximo da espontaneidade com que as árvores ali nasciam e cresciam, vagueava o viúvo, acabando por cortar com naturalidade um pau se salgueiro, que pôs ao ombro, continuando a deambular, pois que o pau sempre daria, no Inverno, depois de seco, quando a chuva impede de trabalhar no campo, para encabar cuidadosamente a enxada preparando-a para nova safra. Quis o acaso, ou outro dos comandantes do porvir, que ali se desse um encontro com o sacristão. Conversa de tom baixo: que a coisa ainda havia de se compor; que ainda hoje voltaria a falar com o Reverendo Padre Inácio à hora de encerrar o cavalo, que nessa altura vai para o recôndito e sossegado quintal das traseiras da casa paroquial rezar o livro das horas, sombreado apenas pela luz de uma vela e está calmo e imbuído do espírito dos salmos; que o povo está todo de acordo…
– Eu até ando a pensar em deixar de ser sacristão, se se der o caso de…
A conclusão da conversa tirou-a, insofismável, Mangelino, olhando interpretativo para a limpidez azul-cinzenta do céu de fim de tarde quando o Sol já se despedira dos Linhares depois de durante todo o dia ter feito medrar o plantio:
– Vai arrefecer esta noite!
Acabada a conversa de poucas falas, o deambulante Mangelino, ainda grávido da ideia do atoleimado Gabriel que nele incubava silenciosa, regressou, não se sabe por que senda ou vereda, ao casebre por volta da hora de vésperas e por entre o cortejo que continuava murmurante, agora já um pouco escurecido pelas minúsculas chamas dos círios e pela negrura que a noite que se avizinhava trazia à cada vez mais premente proibição de sepultura de Ilda no cemitério. Também a chegada de Mangelino não assumiu qualquer relevância, apesar de caminhar mais lesto do que a sua personalidade pacata lhe ditava habitualmente, ninguém tendo reparado que não trazia consigo o pau de salgueiro verde nem que parecia aliviado em consequência dos resultados do retiro introspectivo a que espontânea e instintivamente se submetera.
– Ó Pedro! Deixas-me enterrá-la no sobreiral do cabeço? – perguntou, desenvolto como nunca antes visto, Mangelino que parecia dotado de algum resoluto sentimento ou de convicção similar à do dever cumprido, tudo mesclado de uma leveza semelhante à de um jerico a quem acabaram de aliviar a carga temporariamente, pois que, das poucas coisas certas na vida de um jumento, a carga é uma delas.
Face ao silêncio momentâneo do inquirido, que só não ficou branco porque era de noite, acrescentou o inquiridor:
– Abro a cova lá para trás das fragas que dão para o outro lado do povo, para a serra.
– Ó Mangelino! Sabes que… ainda tenho de falar com a patroa; a terra, herdou-a do pai.
– Ainda tenho de a abrir esta noite – condoeu-se o requerente, regressando a si convicto de que já nada mais havia a fazer.
Começava agora outra dimensão do problema. O povo, inconformado até então, mas conhecedor amestrado das regras que disciplinam os efeitos e o regime dos remendos aplicados nas roupas gastas pelo uso, começava também a dar por assente que a resignação era o remédio, o que fazia surgir outra dificuldade, talvez mais séria. Se a questão inicial era saber como se conseguir que a vontade do Reverendo se formasse em sentido oposto, agora era encontrar a alternativa, o plano B. O prado, não podia ser, que é um lugar de todos e tem tão boa erva para os animais, dando tanto jeito em anos maus de feno nos lameiros. Todos os que tinham terras não conseguiam pensar afectá-las até à eternidade com um tal ónus de sepultura, nem que pudessem continuar a ser cultivadas e a produzir desde castanhas a trigo, cerejas e alfaces. Só se fossem vendidas lá para Vila Real onde não se soubesse a notícia, e mesmo assim… A terra é para gerar, gerar vida. Albergar a morte não é da sua competência. Para escondê-la, sim, mas… Alguns dos que tinham terras propícias à função, longe do povo e pouco férteis, começaram a arredar pé, prova do arrepio que lhes vinha de pensar em ter impregnada no telúrico património familiar a morte de quem desmereceu a vida. Nem a terra sagrada do cemitério consentia por reverenda determinação um corpo esbanjado outrora à triste vida do seu próprio titular e ao pecado alheio, nem a terra civil e germinal consentia o contágio. Pedro, o intimado, não podia abandonar o local sem uma boa desculpa e todos os que tinham terras semelhantes começavam a olhá-lo de vez em quando, o que o instava a não desiludir, considerando que tinha lá para o fim do termo da freguesia a terra mais apropriada por só dar cortiça que ia para o Porto de nove em nove anos e, além disso, por já ter sido pedida, não deveria ser negada. Outros aconselhavam Mangelino, estribados em raciocínios mesclados de deduções impossíveis de assimilar. Outros, por fim, avançavam soluções colectivas:
– Vamos todos falar com o Reverendo.
– Enterra-se mesmo no cemitério e pronto…
Nos ombros de Pedro Canelha estava agora um peso superior que, qual náufrago, o afoitou em jeito de fuga para a frente:
– Eu vou falar com o Reverendo Padre Inácio. E é já. Saiu resoluto deixando primeira impressão de corajoso e destemido, mas no seu íntimo estudando palavras meigas capazes de convidar o Reverendo à complacência e até que servissem para, sem escandalizar, lhe oferecer, em troca, centeio, azeite e outros produtos das suas terras, como prova de um coração recto e temente a Deus e com promessas de eterno segredo sepulcral.
Junto ao casebre, mudava agora o sentimento do povo como que numa pausa dos pesados trabalhos do campo ou numa trégua das aterrorizadoras guerras ainda na memória de muitos. As preocupações em repouso faziam mudar os temas de conversa. De expectativa e de incredulidade, não é possível saber a percentagem.
Já depois da hora das Completas, compareceram junto ao féretro, quase ao mesmo tempo, pois que o escuro da noite impediu de saber quem chegou primeiro, Pedro Canelha e o sacristão. Foi, porém, o acólito que deu a indesvendável boa nova:
– O Senhor Padre Inácio já autoriza que se sepulte a Ilda no cemitério.
Descompressão nos proprietários das terras ameaçadas e licença para Mangelino trabalhar boa parte da noite num cemitério escuro e com a companhia de ferramentas bem conhecidas das mãos calejadas. Porém, os mais curiosos não se aquietaram, conhecedores que eram da obstinação do Reverendo sempre que invocava os dogmas da fé:
– Mas o que se passou, afinal?
Pedro Canelho, boquiaberto, jurava pelo que se quisesse que não sabia. O núncio, encolhendo os ombros ao ponto de lhe sumirem o pescoço, não tinha explicação. Nem sequer se avistara com o Reverendo, que se recolhera em casa depois da hora de vésperas e, com voz gemente, lhe transmitira a sua nova orientação sem sequer abrir a porta como quase sempre fazia para apreciar pachorrentamente duas coisas: o seu copinho de vinho fino e o seu sacristão a acomodar o cavalo com umas repas de feno, uma caldeira de água e duas palmadas firmes na garupa que tanto podiam ser para confirmar o encerrar de um dia como para selar um pacto.
– Por certo caiu em si – adiantou o sacristão à medida que desenterrava o próprio pescoço de entre os ombros ao jeito de um cágado. – Mas não autoriza que vá à igreja nem que receba água benta, acrescentou de sua iniciativa em réstia fidelíssima de cumprimento do seu dever funcional de lealdade para defesa do nome e da sacra posição do seu superior.
Já praticamente ninguém ouviu. O murmúrio era agora menos contido e menos silencioso, embora feito do novo enigma decifrado a precipitadas tentativas nas quais não se incluía qualquer mérito de Mangelino.
No dia seguinte, em campa rasa, Ilda foi sepultada no pequeno cemitério em lugar próximo da porta onde estava escrito «última morada» e perante poucas testemunhas, a maioria ali residentes. Mas o mistério maior deu-se alguns dias depois e desta vez interferiu com o Presidente da Junta, homem a quem o Reverendo Padre Inácio casara, baptizara os filhos, iria em breve casar a filha mais velha e que também se achava com jurisdição sobre o cemitério no que à sua parte terrena tange.
Quando se completaram vinte anos desde que o Reverendo Padre Inácio veio tomar conta da paróquia, o titular do poder local decidiu atribuir o nome do Reverendo à rua térrea que ligava a casa paroquial à escola primária, passando, em curva centrífuga, pelo casebre de Mangelino. RUA DO SENHOR DOM INÁCIO REIS MELEIRO, dizia a placa toponímica de esmalte azul e letras brancas, afixada com solenidade a ferrolhos e enxofre na pedra. Porém, uns dias depois do funeral, apareceu-lhe sobreposta uma outra placa, de granito, com a inscrição: RUA DA SENHORA DONA ILDA.
O povo pronunciou-se espontaneamente e, como sempre, por unanimidade. Disseram as más-línguas do povo que fora um dos filhos da Ilda que viera do Brasil e que não achara «legau» a resistência sacerdotal oposta ao féretro da mãe, como se o próprio filho daquele corpo abandonado pela vida ainda cedo, ele mesmo, pudesse ser a prova e o resultado negativo da indevida vida passada da mãe já morta. Outros aderiam à ideia, de paternidade incerta, que tinha sido o Aníbal Gaudêncio, filho da Maria da Natividade, que nunca se esquecera da reposição dos pedaços de pão com marmelada ou doce de abóbora que Ilda mantivera sem alarido de qualquer ordem nas faltas inerentes à doença maldita que lhe levara a mãe, Gaudência de alcunha familiar intemporal. Havia quem atribuísse a nova designação ao autarca despeitado, escorando a sua tese no facto de não ter imediatamente mandado remover a nova toponímia que ainda hoje, volvidos mais de setenta anos, persiste ajustada sobre o esmalte azul. Outros, mais crentes na bondade essencial do ser humano, asseveravam tratar-se de obra de duplo fundamento, encomendada pelo próprio Reverendo Padre Inácio como acto de devoto e catártico arrependimento e promessa ao santo padroeiro para que lhe levasse em definitivo umas estranhas dores de origem não revelada que trazia nas costas havia alguns dias e que o obrigavam a dar folga ao cavalo. Mangelino não se ocupava nem com o enigma da placa toponímica nem com o das dores do reverendo que não eram de essência capaz de lhe causar interpelação. A posição do sacristão não foi a mais consistente, pois que inicialmente defendeu a ideia de que, quer a autorização para sepultar Ilda no cemitério, quer a mudança toponímica se trataram de actos de clemência do Reverendo vindo depois a abandonar tal tese sem justificação conhecida e sem que se tivesse chegado a saber se atribuiu qualquer valor indiciário a um anónimo pau de salgueiro verde que encontrou perdido entre a vegetação num dia em que, no exercício das suas funções, procedia a limpezas nas traseiras da residência paroquial.
Jerónimo Santos