O Pietismo surgiu no Século XVII, no seio do Luteranismo, como reacção crítica e de depuração espiritual em relação à sua institucionalização, ou forte estatização. Spener e os seus seguidores entenderam que era urgente renovar a Igreja Luterana e aproximá-la das suas origens, devolvendo-a à pureza da piedade e da simplicidade.
O Pietismo é um movimento cristão de renovação espiritual que enfatiza a devoção pessoal, a santidade e a experiência espiritual genuína em vez da mera adesão à Teologia e ao ritual da igreja. Mas vejamos como se definiu e consolidou.
Durante uma estada em Tübingen, Spener leu, impressionado, o “Waechterstimme aus dem Verwuesteten Zion” de Teophilus Grossgebauer (algo como “A voz do guardião da devastada Sião” de Theophilus Grossgebauer), panfleto que criticava a morosidade na renovação ou purificação espiritual das igrejas de então. Em 1666 Spener recebeu o seu primeiro encargo pastoral em Frankfurt, onde confirmaria a sua opinião de que a vida cristã no seio do Luteranismo estava a ser sacrificada pelo rígido zelo da ortodoxia e acentuava-se a decadência moral da sociedade.
O Pietismo, como um movimento distinto na Igreja alemã, ganhava forma através de Spener, que promoveu, em Frankfurt, reuniões religiosas em sua casa (a que chamaria de “collegia pietatis”), nas quais pregava sermões, expondo passagens do Novo Testamento e induzindo os presentes a participar na discussão de questões religiosas que surgiam. A leitura e a meditação da Bíblia, reforçada pela força dos hinos da liturgia luterana, eram o cerne destas reuniões.
Em 1675 publicou a obra referencial do movimento, “Pia Desideria”, ou Desejos Pios, para a reforma da verdadeira Igreja evangélica. Começou por ser uma introdução a uma colectânea de sermões de Johann Arndt (1555-1621), mas rapidamente ganharia vida própria e demonstrou as debilidades da Igreja Luterana. Foi esse título que deu origem ao termo “Pietistas”, tornando-se um manifesto para a renovação da Igreja.
Nesta publicação, Spener elaborou seis propostas para a restauração da vida da Igreja: a primeira, um sério e profundo estudo da Bíblia em reuniões privadas, nas chamadas “ecclesiolae Ecclesia” (“pequenas igrejas dentro da Igreja”); depois, entendendo o Cristianismo como o sacerdócio universal, os leigos devem partilhar e tomar parte no governo espiritual da Igreja; em terceiro, o conhecimento do Cristianismo deve ser alcançado através da prática; em vez de ataques aos incrédulos e heterodoxos, propõe-se, nesta quarta medida, que se lhes dê um tratamento simpático, gentil e integrador; a quinta proposta defende uma reorganização da formação teológica das universidades, onde se deverá dar maior ênfase à vida devocional; a sexta, propõe um estilo diferente de pregação, ou seja, em vez de uma retórica agradável, deve-se procurar a renovação do Cristianismo no interior do Homem, que é a alma da fé, daí trazendo frutos para a vida. A prática da fé, a sua experiência quotidiana, ganham pois destaque nas propostas pietistas de Spener, estribadas numa dimensão interior mais purificada.
EXPERIÊNCIA E PRÁTICA
Assim, o maior uso privado e público das Escrituras, a maior dedicação por parte dos leigos nas suas responsabilidades sacerdotais como crentes, a necessidade de frutos práticos na fé viva, mais piedade e menos disputa teológica na formação do ministério, pregar para edificar, enquanto bases do Pietismo, passaram a ser uma práxis e um importante instrumento através dos “collegia pietatis” (“assembleias de piedade”), como foram antes os Oratórios entre os Católicos, com São Filipe Néri e Bérulle.
O Pietismo deu, com efeito, mais importância à experiência religiosa pessoal de Cristo e dos que O seguem do que à rotina de adoração, enfatizando a leitura e o estudo da Bíblia para melhor conhecimento do modelo a imitar. No sacerdócio universal dos leigos, de todos os crentes, estes podem orientar também a leitura em grupo da Bíblia, mesmo sem formação teológica, e não apenas os pastores. O Pietismo era, pois, crítico do dogmatismo excessivo e da maior focagem na instituição eclesiástica. A oração pessoal e partilhada era considerada mais relevante do que a Liturgia, no que ganharam ainda mais importância os “collegia pietatis”.
Deste movimento pietista inicial brotaria logo um novo grupo, guiado pelo conde Zinzendorff: os “Irmãos Morávios” (da Morávia, região entre a Boémia, na actual República Checa, e a Eslováquia), o qual promovia as iniciativas missionárias.
O Pietismo luterano alemão foi muito alimentado pelos escritos de Johann Arndt (1555-1621), o que o tornou numa “teologia do coração”. Mais tarde, derivaria para uma literatura devocional, baseada em parte na tradição mística alemã.
Após a morte de Spener, August Hermann Francke (1663-1727) tornou-se o líder dos pietistas alemães. Como pastor e professor da Universidade de Halle, os seus escritos, palestras e estratégias de liderança do movimento forneceram um modelo para a renovação moral e a mudança de vida do Cristianismo bíblico, na sua matriz luterana. Mas tanto Spener quanto Francke foram profundamente influenciados pelos escritos de Johann Arndt, para muitos o verdadeiro pai do Pietismo, pelos seus escritos e preponderância junto de Spene e Francke. A obra de Arndt, anterior a Spener e Francke, ainda antes de existir formalmente o Pietismo, que maior impacto causou foi o seu clássico devocional, “A Verdadeira Cristandade”, publicado em 1606. Todavia, as suas sementes cairiam à terra e dariam fruto…
O sucessor de Spener, Francke, era professor na Universidade de Halle. Baseado no princípio de que “um grão de verdadeira fé vale mais do que um quintal de erudição histórica, e uma gota de caridade mais do que um oceano de ciência”, preocupou-se essencialmente com a formação, promovendo acções de alfabetização, de criação de escolas e de um seminário para mestres, nos quais procurava que se inculturasse, fundamentalmente, “a piedade do coração”. Francke é considerado um dos grandes pedagogos da fé e da piedade cristãs, no Pietismo como no Luteranismo, mas não apenas. O seu livro “Doutrina mais breve e simples para dirigir as crianças à verdadeira piedade e ao espírito cristão” (1702) é ainda hoje considerado um verdadeiro plano e método de ensino. Francke teve muitos outros seguidores no Pietismo, conhecidos como “educadores cristãos”. Desta forma, o Pietismo não só se abriu às novas formas de educação cristã, mas também a uma nova pastoral, à acção missionária e à reforma litúrgica.
O movimento pietista, com a inspiração de Arndt, a acção de Spener e pedagogia de Francke enraizou-se no Luteranismo alemão, sendo a matriz e fonte dos seus movimentos “revivalistas” dos Séculos XIX e XX.
Vítor Teixeira
Universidade Católica Portuguesa