Rota dos 500 Anos

Haiti, um exemplo de solidariedade

A partir de agora, para nós, vai ser tudo território novo. Vamos entrar noutra zona das Caraíbas, com novas regras e estilos de navegação. Quando lerem este artigo já deveremos estar nas Bahamas, onde dizem que a água é cristalina e os ventos e correntes têm personalidade própria.

O arquipélago das Bahamas, país independente constituído por milhares de ilhas que se estendem desde a Hispanhola e Cuba até à costa da Flórida, nos Estados Unidos, é conhecido pelas suas praias paradisíacas. Para lá chegar é necessário vencer alguns obstáculos, como a passagem entre o Haiti e Cuba, e todos os recifes que bordejam as ilhas do arquipélago. Segundo nos alertaram, os recifes exigem navegação diurna. Logo, todas as rotas têm de ser bem pensadas e calculadas para se chegar com luz do dia ao destino e conseguir distinguir os acessos que por vezes estão mal iluminados e sinalizados. Navegação à vista será assim uma constante nos próximos dias.

Ainda não sabemos se iremos entrar oficialmente no País ou se apenas iremos parar para descansar um ou dois dias e depois continuar a viagem. Isto porque a NaE, sendo detentora de passaporte tailandês, necessita de visto, o que não pode, em circunstâncias normais, ser emitido à chegada. No entanto, se conseguirmos ultrapassar mais este obstáculo, iremos visitar algumas ilhas enquanto rumamos a norte. Se ainda assim não for possível, iremos directamente para a Flórida, onde tencionamos deixar o veleiro.

Entretanto, estivemos quase duas semanas em Ile à Vache, no Haiti, o que deu para nos apercebermos do quanto temos e do quão pouco é necessário para se ser feliz. Em Ile à Vache a maioria das pessoas vive com pouco mais de um dólar por dia. Apesar de pobres e de pouco terem, não deixam de ser felizes. Foi o que fomos verificando todos os dias durante as nossas deambulações pela aldeia onde estivemos ancorados. Embora sejam pobres, têm sempre algo para comer porque a entreajuda é também uma constante.

Quando aportámos o barco estava cheio dos mais variados artigos para doarmos, desde roupa a equipamento de mergulho e outros itens que fomos acumulando ao longo dos anos e que não nos serviam para nada. A maioria foi entregue ao rapaz que nos recebeu. Sinceramente pensámos que fosse guardar tudo para ele e para a família, mas não foi o que aconteceu. Um pouco por todo lado fomos vendo crianças e jovens com as roupas que havíamos doado, e as pessoas mais adultas a utilizar o material de mergulho na pesca – máscaras, especialmente – de forma a conseguirem ver as redes de apanha de lagosta. Foi, de facto, uma lição de humildade. É que embora tenha tido a possibilidade de guardar tudo para ele, ou para proveito próprio, o rapaz optou por distribuir pelos seus vizinhos a abundância momentânea que estava a viver. Este exemplo deixou-nos de coração cheio e a acreditar que ainda existe bondade neste mundo de pobreza de espírito em que vivemos.

Os últimos dias em Ile à Vache foram preenchidos a tentar curar uma gripe que a Maria apanhou a brincar com a garotada da ilha. Por necessitar de descansar e porque as canoas se aproximavam de cinco em cinco minutos a oferecerem-nos algo ou a pedirem-nos qualquer coisa, decidimos informar as pessoas que não nos podiam visitar assiduamente pois a menina precisava de descanso. Algo que é essencial para a recuperação rápida de uma gripe. Depois de um dia a explicarmos a quem vinha e após a afixação de dois avisos em Inglês e Francês, foram de uma compreensão extraordinária e deixaram de vir ao nosso barco. E quando vinham, chegavam sem fazer barulho apenas com o intuito de perguntar se a Maria estava melhor e se era necessário irmos ao médico.

Deixamos o Haiti com ideia de voltar e continuar a apoiar esta gente. Não custa nada! Basta enviarmos aquilo que não precisamos nas nossas casas. Tudo é necessário nesta ilha, desde chinelos a cadernos escolares, passando por materiais de construção, baterias, painéis solares e madeira. São tudo bens que de uma forma ou de outra tentaremos angariar quando regressarmos à Europa ou à Ásia.

Iremos ficar em contacto com o jovem que nos ajudou na chegada e que esteve sempre disponível para nos assistir. Juntos iremos encontrar formas de enviar ajuda, seja bens ou dinheiro. De acordo com ele, há um projecto estrutural que é de extrema importância para a aldeia. Trata-se de fazer chegar água canalizada do cimo da montanha onde existe um poço e uma captação de água das chuvas. A canalização está a pouco mais de quinhentos metros da aldeia mas não há verba para finalizar a sua extensão. Uma vez concluído, o projecto iria permitir o acesso à água potável por parte da população. Actualmente, a água tem de ser transportada em garrafões, havendo quem tenha criado um sistema de captação das águas da chuva, o que nem sempre é viável.

O acesso a água potável é um dos direitos mais básicos do mundo moderno, mais não seja para evitar grande parte das doenças que surgem devido a falta de higiene. A água que todos damos como garantida ao abrirmos as torneiras das nossas casas tem aqui de ser carregada por crianças de todas as idades, desde a fonte….

João Santos Gomes

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