Católicos massacrados em Sagaing
Dezoito meses após o golpe de Estado de 1 de Fevereiro de 2021, continua a alastrar a violência – e ao que parece, sem fim à vista – por todo o Myanmar. No passado dia 16 de Setembro, onze crianças foram vítimas de um ataque aéreo do exército regular sobre uma área habitada por civis. Tratava-se de alunos que assistiam a uma aula numa escola primária. No rescaldo de mais esta barbaridade perpetrada contra a comunidade católica do norte do País – aquele que é já conhecido como “o massacre de Sagaing” –, afirmou em entrevista à Agência FIDES o arcebispo de Mandalay, D. Marco Tin Win: «Deus Nosso Senhor está do nosso lado. Nele confiamos. Encorajamos os fiéis a não perder a esperança!». Também Sua Santidade, o Papa Francisco, condenou o vil ataque lembrando o facto de esse «nobre país» estar a ser martirizado há mais de dois anos por graves confrontos armados e todo o tipo de arbitrariedades que causaram muitas vítimas e deslocados. «Parece que é moda, hoje, no mundo, bombardear escolas», comentou o Santo Padre no final de uma missa a que presidiu na cidade de Matera, no sul da Itália, que acolheu o 27.º Congresso Eucarístico Nacional do País. «Que o grito desses crianças não se deixe de ouvir! Tragédias destas não podem voltar a acontecer», frisou.
Na verdade, estamos perante mais um inglório duelo de David versusGolias. De um lado, um exército com grande capacidade estratégica e armamento pesado; do outro, uma resistência improvisada de gente anónima aglomerada nas autodenominadas Forças de Defesa Popular, maioritariamente constituída por jovens. Neste momento, metade do território da arquidiocese de Mandalay (onde se insere Sagaing) está a ser afectado por constantes combates que têm causado morte, devastação e sofrimento. Confrontada com uma onda de refugiados sem precedentes, cristãos e budistas, a Arquidiocese decidiu criar centros de apoio em cinco das suas paróquias. «Estamos a fazer o que podemos para ajudar a mitigar o sofrimento», referiu o arcebispo D. Marco Tin Win.
Além das aldeias, os projécteis caem também sobre os pagodes, as igrejas e as escolas, pois sabem os militares que nesses locais buscam refúgio «os desamparados e os desesperados». Justifica o exército a violência usada com “a suspeita” de que forças da resistência ali se possam esconder…
Também as comunidades rurais do vale do rio Mu, onde habitam luso-descendentes, os ditos bayingyis, continuam a ser alvo dos ataques da soldadesca da Junta Militar. Desta feita, após a habitual pilhagem, deixaram na parede de algumas casas das aldeias um recado bem explícito. Fica aqui a tradução: “Mais cedo ou mais tarde todos vocês, os Kalars (gente mestiçada com estrangeiros), estarão sob a escravidão militar. Aung San Suu Kyi está a apodrecer na prisão: ela não vos pode vir salvar, ó Kalars! Sejam escravos sob os nossos pés! Jamais vereis a democracia! Devem abandonar de vez o nosso país. Se não saírem, todos vocês serão massacrados. Assinado: SAC [Junta Militar do Mianmar]”.
Em Moe Bye, diocese de Pekon (centro-leste de Myanmar) foi recentemente vandalizada a igreja católica Mãe de Deus. Com cerca de dois mil habitantes, todos católicos, Moe Bye situa-se na fronteira entre os Estados de Shan e Kayah, e está estrategicamente localizada na estrada de Loikaw (Estado de Kayah) para Taunggyi (Estado de Shan).
O monsenhor Tin Win constata um enorme desânimo entre os crentes. E não é para menos. «É difícil ver uma luz nesta escuridão, na precariedade, no cansaço de viver esta situação diariamente», afirmou. Resta a fé, «uma fonte de graça e de força». As igrejas, apesar do perigo, estão cheias com pessoas que desfiam as contas do Rosário e se disponibilizam para ajudar o seu semelhante, sobretudo os doentes, os feridos ou os mais vulneráveis. «Essa força vem do Senhor», acrescentou o prelado. Também os sacerdotes e as religiosas, à semelhança de Jesus com os discípulos de Emaús, acompanham as famílias em situação mais precária, caminhando lado a lado com eles. «Estamos ao vosso lado», dizem eles aos refugiados. Um auto-sacrifício também protagonizado pelos religiosos budistas. «Esta proximidade é para nós um potente meio de evangelização num momento particularmente difícil», acentuou Dom Tin Win.
Convém lembrar que nos últimos cinquenta anos a repressão militar foi sentida sobretudo pelas etnias das regiões fronteiriças já com vasta tradição na luta de resistência contra a ditadura militar. É conhecido internacionalmente o caso particular dos karen, maioritariamente católicos, havendo inúmeros membros dessa etnia permanentemente refugiados na Tailândia e noutros países. O paradigma alterou-se e hoje todos os cidadãos de Myanmar sentem na pele a opressão dos generais, mesmo os residentes nas zonas urbanas do País. Talvez por isso todos os cidadãos estejam mais unidos do que nunca, independentemente da sua etnia ou religião. «As pessoas de hoje entendem e compartilham mais o sofrimento do outro, e isso gera empatia e solidariedade», concluiu o arcebispo.
Joaquim Magalhães de Castro