Abandonado por Deus?

REFLEXÃO

Abandonado por Deus?

O Salmo 22 é talvez um dos salmos mais conhecidos de todos os cristãos. É o salmo que Jesus rezou a partir da cruz. Tal como eu, muitos de vós conhecem este salmo, pelo menos a sua primeira estrofe, desde a infância. Quando eu era criança, os padres que celebravam a Semana Santa na nossa nobre cidade de El Oso (Ávila), geralmente dominicanos, pregavam todas as sextas-feiras santas as “Sete Últimas Palavras de Jesus”. Sem dúvida, a quarta era sempre a mais dramática e misteriosa: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» (Mt., 27, 46; Mc., 15, 34).

O Salmo 22 é um salmo de lamento e de louvor. Os biblistas dizem-nos que os salmos de lamentação são normalmente também salmos de louvor, como é o caso do Salmo 22: a primeira parte é de lamentação (versículos 1-21); a segunda, de louvor (versículos 22-31).

O Salmo começa com um lamento misterioso: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? Chamo-te de dia, mas não me respondes; de noite, mas não encontro descanso» (22, 1-2). O salmista queixa-se ao mesmo tempo que afirma a sua fé em Deus: “Meu Deus, meu Deus…”.

Cristo crucificado reza o Salmo 22, que se realiza substancialmente nele: «Meu Deus, meu Deus…»; «As minhas forças estão a escassear…»; «A minha boca está seca como barro, a minha língua cola-se ao maxilar»; «Posso contar cada um dos meus ossos, enquanto eles olham e se regozijam»; «Repartem entre si as minhas vestes e lançam sortes sobre a minha roupa» (Sl., 22, 1; 14-15; 17-18).

Jesus crucificado e a sofrer terrivelmente, sente-se abandonado por Deus. Este facto incrível não é fácil de explicar: Jesus é abandonado por Deus Pai! Jesus, enquanto Filho de Deus, não podia ser abandonado por Deus Uno e Trino (é a segunda Pessoa divina), mas Jesus, enquanto filho de Maria, enquanto Homem – como interpreta a Tradição cristã –, foi abandonado por Deus. O Senhor Jesus Cristo, “feito à semelhança do homem”, “quis fazer suas as palavras do Salmo, quando estava pendurado na cruz: ‘Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?’” (Santo Agostinho). “Assim foi o filho abandonado à morte pelo Pai” (Tertuliano).

Jesus na cruz não se queixa do abandono de Pilatos e dos judeus, dos seus carrascos; nem se queixa do abandono dos seus discípulos. Lamenta profundamente o abandono do Pai. Ao seu Abbá Pai, Jesus está profundamente unido e sofre profundamente quando o Pai o abandona. Por que Jesus foi abandonado pelo Pai? Porque foi ele a vítima para nos redimir dos nossos pecados, para nos dar a graça e assim nos justificar: «O facto de Cristo ter morrido por nós, sendo nós ainda pecadores, é a prova do amor de Deus por nós» (Rm., 5, 8).

Jesus aceitou a “solidão absoluta” para estar próximo dos solitários e abandonados do mundo e, assim, mostrar-nos o caminho de vida que devemos seguir: «Cristo sofreu por vós e deixou-vos o exemplo para seguirdes as suas pisadas» (1Pd., 2, 21); «Fostes comprados por um preço, por isso usai o vosso corpo para a glória de Deus» (1Cor., 6 ,20). O Cristo abandonado na Cruz está com todos os abandonados do mundo – os pobres, os migrantes, os refugiados, as mulheres, as crianças nascidas e por nascer, os idosos, e todos aqueles que, antes de morrerem da pandemia de Covid-19, se sentiam completamente sós: sem entes queridos por perto, sem amigos, nem sequer uma bênção.

Lamentar, queixar-se a Deus pela sua ausência faz parte da vida de um crente. Moisés interroga o Senhor: «Por que tratas tão mal o teu servo?» (Nb., 11, 11). O povo de Israel queixa-se a Deus e a Moisés: «Por que nos fizeste sair do Egipto, para nos matares de sede, a nós, aos nossos filhos e aos nossos animais?» (Ex., 17, 3). Há o lamento lancinante de Job: «Por que não morri ao nascer, não saí do ventre e não expirei?» (Job., 3, 11). Os profetas lamentam-se pelo povo de Israel: «O Senhor abandonou-me, o Senhor esqueceu-se de mim» (Is., 49, 14).

Maria e os santos sentiram-se, num momento ou noutro – tal como Jesus – abandonados por Deus. Mais cedo ou mais tarde, na nossa própria vida, experimentamos o abandono de Deus! Os discípulos estão no barco com Jesus e têm muito medo de uma grande e ameaçadora tempestade de vento. Como eles, nós gritamos a Jesus, que está a dormir: «Mestre, não te importas que estejamos a perecer?» (Mc., 4, 37-38). E perguntamos-lhe: Porquê esta desgraça, este cancro, esta morte de uma criança, os genocídios actuais, a terrível pandemia de Covid-19? Porquê as terríveis guerras? Como é que o nosso querido Deus, omnipotente e infinitamente compassivo, não intervém?

Mysterium doloris, o mistério do sofrimento, faz parte da nossa peregrinação pela vida! Deus, nosso Pai, não responde directamente a estas perguntas mas, no seu Filho crucificado, Jesus Cristo, ilumina, dá sentido aos nossos sofrimentos… e esperança. Na nossa hora de escuridão, acreditamos que Deus é amor e sabemos que Ele nos ama e que, com o seu amor, podemos sofrer pacientemente, talvez até com alegria, embora isso seja muito mais difícil. Palavras incrivelmente consoladoras de Deus para todos nós: «Pode uma mulher esquecer-se do filho que amamenta, ou não ter compaixão do filho do seu ventre? Ainda que estas se esqueçam, eu não me esquecerei de ti» (Is., 49, 15-16). Fazendo a experiência do abandono divino, Cristo está próximo de nós e nós estamos próximos dele, e com a sua graça e o seu amor estamos também próximos dos abandonados das nossas comunidades.

O grito de Cristo na cruz não é um grito de desespero – como o grito de Caim e de Judas – mas um grito de esperança fiel, uma oração à misericórdia de Deus: «Resgata a minha alma da espada»; «Salva-me da boca do leão» (Sl., 22, 20-21). Acreditamos que a cruz, a nossa cruz, é a cruz da salvação, da esperança, da ressurreição futura. A Sexta-feira Santa aponta para o Domingo de Páscoa: o Senhor Crucificado abandonado é o glorioso Senhor Ressuscitado.

Mãe Maria, Nossa Senhora das Dores, rogai por nós!

Pe. Fausto Gomez, OP

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