Caminhos da Palestina
Para quem se aventura na partilha da escrita, por mero gosto da reflexão, como é o meu caso, o desfolhar inexorável das folhas do calendário impõe temas recorrentes. O tema do Natal parece um deles porque, à primeira vista, já está tudo dito.
Escreveram-se bibliotecas sobre o nascimento de Jesus. O Jesus-Deus e o Jesus homem. O Jesus histórico, o Jesus político, o Jesus “inventado” pelos cristãos, o Jesus caricaturado pelos adversários dos cristãos.
E são tratados de teologia que se têm redigido, reservados a especialistas. E teses universitárias, circunscritas ao meio académico. E ensaios elaborados por sacerdotes e leigos, enfatizando este ou aquele aspecto da vida e ensinamentos do Mestre. E textos panfletários criticando ferozmente Cristo e o Seu legado, a Sua Palavra e a Sua Igreja – que historicamente tem sido o Seu veículo.
E depois o romance e a poesia sobre o Natal; e os debates em círculos de crentes, católicos e não católicos, não cristãos, agnósticos, ateus.
E, desde que os irmãos Lumière inventaram a caixa das imagens em movimento, e depois a caixa das imagens falantes, fizeram-se centenas de filmes sobre o evento. Há pois mesmo um Natal, muitos natais versão Hollywood…
E compuseram-se milhares de canções lindíssimas, nos últimos dois mil anos, sobre o humilde nascimento de Jesus…
Natais de ontem e de sempre
Mas a ilusão da repetição aí está: é que é de facto uma ilusão.
É verdade que Natal simboliza sempre a originalidade da mensagem que encerra. Mas, em cada ano que passa, nós é que já não somos exactamente os mesmos ao recebê-la.
E porque, desde que continuemos a viver, não está tudo antecipadamente dito, nem tudo antecipadamente escrito, nem tudo filmado, ou cantado…
Porque para cada um de nós, e até ao momento decisivo da partida, não está ainda tudo vivido. As oportunidades de mudança, de um novo itinerário, de uma nova compreensão sobre a vida, estão sempre em aberto, até ao fim.
É por isso que o Natal nunca é o mesmo, não na essência do que simboliza, naturalmente imutável, mas na silenciosa mudança que se opera em nós, com o passar dos anos.
Em cada ano que passa o Natal insere-se na nossa vida concreta, com suas alegrias, tristezas, decepções, entusiasmos, vitórias e derrotas.
De um Natal para o outro, são familiares e amigos que desaparecem e outros que surgem, que nascem, que conhecemos, que entram no nosso círculo de afectos ou dele saiam, deixando atrás de si a dor incurável da ausência.
De um Natal para outro, são novos desafios que temos que enfrentar, novas interrogações a responder, novos escolhos a ultrapassar.
Quer no limite das nossas quatro paredes ou no vasto mundo, nada é igual de um Natal para outro.
Por isso, é nos álbuns de velhas fotografias que tentamos em vão parar o tempo, passando em revista pedaços de vida por breves momentos ressurgidos, em forma de recordações. E desfila na memória o rosário das sucessivas perdas que a vida nos foi reservando.
Claro que se poderia dizer o mesmo de qualquer outra data, mas não para nós. Porque, para os cristãos, o Natal é a fronteira – quase física e em todo o caso simbólica – do nosso caminhar.
Este pensamento colide um pouco com a ideia de que, para os cristãos, é a Ressurreição – e não a Natividade – que marca a profunda originalidade da Fé que os une.
Mas, não disputando o argumento teológico, podemos sentir, na intimidade de cada um, que Jesus recém-nascido é O que se aproxima mais de nós, pela Sua humanidade, enquanto o Cristo de depois da Paixão e Morte é Aquele que já nos escapa, que já não é inteiramente nosso, abrindo-nos embora as portas de um mundo novo, antecipado com alegria e esperança. E que prometeu regressar.
É preciso renascer
Não é pois o Natal a mera comemoração de um acontecimento que ocorreu há dois mil anos, como se celebram datas significativas de reis mortos, de batalhas gloriosas, de heroísmos os mais diversos, para sempre lembrados.
Não, o Natal para nós é diferente. Desde logo, é a recordação viva de uma enorme, de uma imensa loucura.
De facto, só a imaginação de um Deus Criador poderia conceber o plano de se transformar em pessoa humana, para nos vir ensinar de novo a…viver.
Isto é, a ensinar-nos de novo a gerir a nossa liberdade. Porque se trata disso mesmo. Da nossa liberdade. Como pessoas. E como criaturas, em busca permanente do Criador.
Para tornar o seu plano “mais credível”, melhor aceite pela humanidade vulnerável do ser humano, diz-nos a Fé que Jesus foi verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. (Acreditar nisso em pleno século XXI? – ouço já a interrogação de tantos, inconscientes ou esquecidos de que a própria questão não tem nada de novo e se coloca há dois mil anos…
Pois para esses a resposta é a de sempre: para o Inventor das leis da Física, da Química e de tudo o resto – o Deus das coisas escondidas – TUDO É POSSÍVEL!).
Finito, transitório, não foi o homem que criou a religião, mas foi o homem que, de novo com Jesus Cristo, depois de Abraão, depois de Moisés e dos Profetas, sentiu a mão de Deus a tocá-lo levemente, lembrando-lhe o sentido do caminho de regresso a casa.
A velha ideia de que a “religião é o ópio do povo” está assim nos antípodas da libertação interior que nos é proposta, desde logo, pelo Natal de Cristo. Porque buscamos Deus em liberdade.
Podendo por isso negá-lo no momento seguinte. Não foi Pedro que o fez, por três vezes, no átrio de Pilatos? Pedro, o primeiro dos apóstolos, e afinal traindo o Mestre no momento decisivo!
Mas foi ele que teve também a frase definitiva, quando, interrogado por três vezes, por Jesus, sobre a sinceridade da sua total adesão à Verdade revelada, deu a razão última: Porque só Tu, Senhor, tens palavras de vida eterna.
Nesta dualidade do comportamento de Pedro vemos retratado o nosso próprio modo de agir, oscilando, no decurso da nossa vida, entre a cobardia e a coragem, a Fé e a dúvida, a motivação e o desalento.
Podemos negá-Lo três vezes, trinta vezes ou por toda a vida. Mas aí está a divina surpresa: o Menino da gruta de Belém veio assegurar-nos que a porta está sempre aberta. Para quando quisermos tomar o caminho certo de regresso a casa.
Eu sou o Caminho, lembrou.
Carlos Frota
Universidade de São José