A embaixada jamais concretizada
Apesar do sucesso da entrada de António Monserrate em Surate, não esqueçamos que fora antes equacionado o seu assassinato. Não fosse a intervenção de um certo turco – que foi lembrando os mais fanáticos (legitimamente preocupados com a presença da frota portuguesa na foz do rio…) que aquele estrangeiro viera a mando do rei –, o crime teria sido consumado. Em consonância, Miram Sultan, o governador, anunciou um faustoso banquete em honra do padre. Chegado o dia, foi enfeitada com bandeiras a cidadela, posicionados os soldados em fileiras ao longo da muralha, formados os esquadrões dos elefantes, tendo o próprio governador chegado em cavalgada na companhia dos seus generais.
Ali, “na planície em frente à cidadela”, protegido do Sol sob o pavilhão real, aguardou Miram Sultan que fosse trazido à sua presença o estrangeiro de longas vestes negras. Nesse preciso momento foi disparada, primeiro uma salva dos grandes canhões posicionados nas ameias da cidadela, depois dos canhões menores e, finalmente, dos mosquetes da guarnição. Por fim, todo o exército gritou “Allah!” em uníssimo, por três vezes. A comitiva seguiu depois para o palácio onde foi ofertado o sacerdote com o prometido repasto. Pasmava Monserrate, desconhecedor do motivo de toda aquela honra e hospitalidade. Na realidade, atormentava-o pensamentos outros: após a sua chegada a Surate soubera do assassinato de dois jovens cristãos, traídos por uns renegados que os denunciaram, colando-lhes o libelo de espiões. Entre o cutelo e a apostasia, corajosamente responderam aqueles: “mil vezes a morte do que o abandono da Fé cristã!”. De nada valeria o resgate de mil moedas de ouro entretanto oferecido pelos seus amigos mercadores jains: sem demora foi levada cabo a sumária execução. Monserrate chama aos jains “hindus pitagóricos”, pois “não comem nenhuma criatura viva e resgatam da morte, se puderem, tudo o que respira, até pulgas, insectos, vermes e pequenos pássaros”.
Terminado o banquete, autorizaram o padre a ir ter com os seus compatriotas da frota inimiga. Capitaneava-a Fernando de Miranda, com quem Monserrate mantinha estreita e longa amizade, iniciada já em Portugal. Foi por isso recebido com a devida salva de honra de todos os canhões da frota; e isto, no entender do nosso narrador, “para que os muçulmanos percebessem o quanto os portugueses honram os seus padres”. Depois de uma noite inteira de conversa com o amigo, o clérigo regressou a Surate de madrugada, para grande surpresa dos habitantes que assim puderem constatar ser ele homem de palavra, “pois embora pudesse ter permanecido com segurança entre compatriotas, optara por regressar”.
Passaram a disputar o prazer da sua companhia, “o governador e o chefe da polícia”, enquanto Monserrate preparava a viagem a Damão, que aconteceria poucos dias depois. Neste enclave sob controlo português, e enquanto aguardava a chegada de outras naus, o capitão Fernando de Miranda policiava o oceano. Um navio vindo de Meca e rumo a Surate foi capturado e a condição para aquela rendição sem luta foi a de que todos a bordo, “excepto turcos, desertores e renegados cristãos”, fossem autorizados a partir em segurança. No entanto, demoraria Miranda a respeitar esse acordo; e entretanto foram morrendo “de fome, sede e sofrimento” muitos dos prisioneiros. Outros foram sequestrados e injustamente vendidos como escravos por “certos cristãos ímpios”. Face a tais arbitrariedades, Monserrate sentiu que era seu dever persuadir o capitão a cumprir a promessa. Fernando de Miranda de bom grado registou o conselho, e encarregou o seu amigo de descobrir quem de entre os prisioneiros era turco ou cristão renegado. Isso o fez o nosso padre, e com tal empenho que a cuidadosa investigação durou dois dias. Os passageiros mogóis foram libertados; mas vários turcos e apóstatas foram mantidos a ferros.
Entretanto chegava a Damão a comitiva do embaixador de Acbar, e daí, agora de novo na companhia de António Monserrate, prosseguiria até Goa. O vice-rei Francisco de Mascarenhas recebeu primeiro o sacerdote só depois o embaixador de Acbar. Porém, ao inteirar-se do propósito da embaixada, e depois de conferenciar com os nobres mais próximos, providenciaria generosamente todas as despesas necessárias para a viagem. O provincial de Goa também comunicou o assunto aos padres da Companhia, de acordo com o procedimento regular, e concedeu ao sacerdote licença para prosseguir viagem com o embaixador. No entanto, naquele ano apenas um navio vindo de reino havia chegado à Índia; e, portanto, todos estavam de acordo que não seria digno enviar um embaixador de tão poderoso soberano num navio tão pequeno e já tão cheio de passageiros. Foi, portanto, acordado que deveria ser adiado um ano o envio da embaixada. Assim, Monserrate transferiu a sua atenção e o seu pensamento para os deveres do seu ministério. E no ano seguinte, a situação havia-se de tal modo alterado, “com mudanças de planos e políticas”, que o projecto da embaixada acabaria por ser abandonado e entregue, como nota Monserrate, “ao esquecimento eterno”.
Joaquim Magalhães de Castro