O reencontro com o padre Rudolfo Aquaviva
No caminho de regresso da comitiva de Acbar a Fatehpur Sikri, uma vez concluída a campanha de Cabul, certo muçulmano perguntou ao padre Monserrate se ele acreditava no Profeta e no Alcorão. Confrontado com a resposta negativa, insistiu: “E por que não?”. Respondeu o jesuíta: “Porque nem ele é profeta nem o Alcorão é o livro de Deus”. Horrorizado, o homem tratou logo de alertar as pessoas em redor para a blasfémia do sacerdote. E fê-lo com tanto empenho que Monserrate teria sido ali apedrejado até à morte não fosse a multidão recear a reacção de Acbar, que tinha o catalão em grande estima. Apenas isso impediu o assassinato.
Mas, na verdade, há muito que Acbar deixara de acreditar no Islão, cumprindo, não obstante, os seus rituais. Assim, ao passar de novo em frente à mesquita de Ali, agora na descida da portela de Kyber, num gesto de pura “hipocrisia política”, como comenta Monserrate, não deixou de fazer as suas orações, virado para Meca, e ordenou que fosse dada em esmola “uma peça de ouro” a cada um dos mendigos que sempre acompanhavam o seu exército. Monserrate fala em três mil mendigos! Já nas planícies do Industão, mandou o soberano mogol incendiar as aldeias junto às margens do Cabul cujos habitantes, provando a sua lealdade a Mirza Khan, se tinham recusado a vender-lhe cereais e outros mantimentos aquando da sua prévia passagem. Limitaram-se estes a assistir impotentes à destruição, quedos e mudos no outro lado do rio.
Mais adiante, perto da junção do Cabul com o Indo, foi montado o acampamento enquanto era lançada uma ponte de barcos sob o caudal. Estávamos em Setembro, a temperatura arrefecera e deixara de derreter a neve na alta montanha, diminuindo assim o caudal do rio ao ponto de este poder ser vadeado com segurança. Quando a ponte ficou pronta, marchou então na direcção de Caxemira com a intenção de a punir, pois o rajá local não mostrara antes qualquer sinal de gratidão junto do senhor do império. Era seu dever, por exemplo, ter vindo cumprimentar Acbar pessoalmente, ou pelo menos enviar-lhe embaixadores, presentes e mantimentos, reforçando assim os sinais da sua lealdade. Até porque o rei de Caxemira fora pouco antes expulso dos seus domínios por um tio desnaturado e, não fora a pronta intervenção de Acbar, estaria ainda exilado. Dissuadido pelos seus ministros, Acbar acabou por não fazer o que pretendia. Lembraram-lhe aqueles que o exército estava esgotado pela árdua campanha de oito meses e tudo o que mais os homens precisavam era “descanso e refresco”. Além disso, o empreendimento seria impossível para os elefantes, “pois as montanhas são mais íngremes, mais altas e mais intransitáveis do que as de Cabul”, e com a proximidade do Inverno em breve as passagens seriam bloqueadas pela neve.
Entretanto, foi o imperador informado do débil estado de saúde de Rudolfo Aquaviva e, a propósito, perguntaria aquele a Monserrate o significado desse nome e se algum dos apóstolos o tinha. Pediu ainda que repetisse o nome dos restantes e lhe dissesse quantos eram ao todo. Satisfez-lhe a curiosidade o sacerdote, lembrando-lhe o facto dos cristãos reconhecerem doze, “que viveram muito antes de Maomé e eram mais poderosos e mais sábios do que ele”, enquanto os muçulmanos reconhecem apenas um. Esses apóstolos ensinaram que Cristo é o Filho de Deus, facto que Maomé nega.
António de Monserrate pediu depois autorização para ir visitar Aquaviva, pois este desejava ser ouvido em confissão. Curioso, Acbar anuiu, não sem antes questionar a natureza deste sacramento. “Que pecados vocês, sacerdotes, podem cometer, se pelo amor de Deus optam por esse tipo de vida e usam roupas pretas?”, perguntou. (Lembre-se que entre os mogóis o preto era o sinal do luto e o símbolo da morte). Replicou Monserrate: “Acredito que os pecados de Rudolfo sejam poucos e pequenos. Pois ele supera todos os outros no carácter e na pureza da sua vida. Mas somos ordenados por Cristo e pela Igreja a revelar aos sacerdotes em certos momentos declarados as nossas acções, as nossas palavras e os pensamentos dos nossos corações. Portanto, se permitir que o visite, dar-nos-á aos dois uma grande alegria: desejamos sinceramente ver-nos”. Virando-se para alguns dos espectadores, exclamou Acbar: “Vejam como eles se respeitam e amam!”. Ordenou a um dos seus oficiais que tratasse da partida do padre e lhe desse para as despesas da viagem o dobro do que ele havia pedido. Monserrate partiu imediatamente para Lahore, onde chegou ao fim de quatro dias. Ironia das ironias: adoeceria Monserrate gravemente pelo caminho, enquanto em Lahore Aquaviva recuperava gradualmente as forças, acabando por ser este a tratar da convalescença do primeiro!
Quando Acbar chegou a Lahore, correu Rudolfo ao acampamento para felicitá-lo. O imperador recebeu-o com o afecto de sempre e revelou-lhe a sua intenção de enviar uma embaixada ao Rei de Espanha e Portugal “e um dos sacerdotes com ela”. É claro que já adivinharam quem acabaria por ser o escolhido: o nosso António de Monserrate!
Joaquim Magalhães de Castro