Acbar beija a imagem de Cristo
Apercebendo-se Mirza Hakim da dimensão do exército do seu meio-irmão, considerou seriamente a rendição. E tê-lo-ia feito se o tio, Faridun Khan, “que ele tanto respeitava pela sua coragem guerreira e habilidade de estadista”, não o tivesse dissuadido. Explica-se esta atitude pela antiga inimizade desse general com Acbar, de cujo exército tinha desertado. Ou seja: para salvar a pele (pois temia cair nas mãos de Acbar), Faridun Khan estava pronto a entalar o sobrinho. Garantia ele que as forças do imperador não passavam de um “grupo desorganizado de infiéis e idólatras indianos”, não tendo por isso Mirza nada a temer, até porque a sua cavalaria era superior.
Ao saber que aquele se preparava para resistir, contrariando as informações dos emissários, Acbar aprontou-se para a travessia do rio, não sem antes ter despachado aqueles com “somas de dinheiro e algumas roupas usadas”. Dele não queriam que dissessem que era descortês… A operação fluvial seria, entretanto, abortada. Magos e adivinhos do séquito imperial consideraram não ser ainda o momento mais auspicioso. Este surgiria uns dias depois, e o poderoso exército, vadeadas as turbulentas águas, montou arraial na margem do afluente Cabul, “a cerca de duas milhas de distância”. Prova de afecto para com o padre cristão o facto de Acbar encarregar um certo general da “sua travessia em segurança”. Enquanto isso, a guarda avançada de Murad, “composta por quatro mil cavaleiros”, era atacada pelo exército de Mirza Hakim, causando pânico nas hostes do príncipe, prontamente debelado pelo mesmo da seguinte forma: desmontando do cavalo, Murad pegou numa lança “e declarou que não recuaria um centímetro” daquele local, mesmo que o exército hostil “o esmagasse com os seus projécteis”, recordando, no entanto, que caso sobrevivesse se lembraria de quem o havia abandonado.
Ao ver a coragem do jovem príncipe – Monserrate diz-nos que ele teria apenas doze anos de idade! – as tropas reuniram-se à sua volta, numa altura que se aproximavam dos destacamentos de Acbar, um deles composto por elefantes, o terror dos cavalos não acostumados a eles. Mirza Khan depressa se apercebeu que o tio o enganara. E como tão grande exército entrara já no seu território não teve alternativa se não bater em retirada. Vitorioso, Murad, “que havia organizado a sua linha de batalha” de acordo com o sistema tradicional, ali acampou aguardando ordens do pai.
Monserrate dá-nos conta, uma vez mais, das tácticas militares dos mogóis, aproveitando para adiantar mais algumas características dos elefantes, animais que o fascinavam. Disposta em três divisões, “uma na ala esquerda, uma no centro e outra na direita”, a cavalaria mogol posicionava-se em forma de meia-lua. Atrás dela, a infantaria e logo a seguir os paquidermes. “Os elefantes aterrorizam em vez de prejudicar o inimigo: e são mais úteis como espectáculo do que como verdadeiro agente de vitória”, esclarece Monserrate. Jamais os colocam à frente da tropa, pois caso sejam feridos atacam “sem distinção entre amigo e inimigo”. Receiam as armas de fogo e recuam de cabeça “se forem esfaqueados no tronco”. Além de equídeos e paquidermes, o jesuíta evoca “camelos do Baluchistão” ao serviço do rei. Deles gaba a agilidade em combate, maior do que a dos cavalos, e a ferocidade, pois “lutam com dentes e patas”. Quando agarram uma vítima, “ajoelham-se sobre ela até que esta morra”.
Habitada por patanes, súbditos do imperador mogol, a região onde se desenrola a nossa acção era então designada, “como é costume entre tais tribos”, pelo nome da sua capital, Cabul, e dividia-se “em três áreas naturais”, entre as quais a celebérrima Gandara, conhecida pela sua arte budista. Compreende hoje os distritos de Peshawar e Rawalpindi, mas as antigas inscrições persas incluíam nela o distrito de Cabul, muito embora, como recorda Monserrate, há muito tivessem desaparecido os vestígios “dos antigos nomes, distritos, cidades e vilas”.
Durante os debates religiosos que manteve com Acbar, pôde Monserrate esclarecer a cristandade dos georgianos. Eles que para além do Livro dos Salmos reconheciam também o Velho e o Novo Testamento, “atribuindo igual confiabilidade e autoridade a todos os três, como sendo dados por Deus”. Estavam nessa condição também os arménios que pela Índia pululavam, gregos, caldeus, sírios e até alguns nestorianos. Se bem que estes fossem “apenas cristãos nominais”, e tal como os muçulmanos negassem que Cristo seja o Filho de Deus. Da mesma forma, portugueses, espanhóis, italianos, alemães eram todos erroneamente chamados de francos…
Explicava-lhe isto tudo bem, servindo-se de livros e ilustrações, “para que Vossa Majestade” não tivesse dúvida quanto à convergência dos cristãos nessa matéria. “A religião cristã é sustentada pela autoridade dos livros sagrados, que em muitas passagens ensinam claramente essa doutrina. Portanto, nenhuma dúvida de sua veracidade pode penetrar no coração dos verdadeiros cristãos”, dizia. Dissertou ainda acerca da Arca da Aliança e da Arca do Noé, recorrendo a terminologia simples “e adequada à compreensão de seus ouvintes”. Ciente da aversão muçulmana à idolatria, foi lembrando que Deus havia proibido “apenas a fabricação e adoração de imagens de falsos deuses – não a fabricação de estátuas de santos”. Embora o impressionasse a conversa do padre, Acbar fingia pensar noutros assuntos, “para que seus cortesãos não o imaginassem atraído pelo cristianismo”. No entanto, certa ocasião não hesitou “em reverenciar e beijar uma imagem de Cristo” em público, para gáudio de António de Monserrate.
Joaquim Magalhães de Castro