PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 28

PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 28

A acção pacificadora do missionário

Aproveitou a estada nas margens do Indo, o sagaz Acbar, para mediar com sucesso um conflito entre chefaturas rivais daquela região, obtendo delas em troca balsas e embarcações adequadas ao transporte do seu exército – quarenta ao todo, como especifica o padre Monserrate –, além de suficiente madeira para construir uma ponte. Enquanto isso, passava as noites, o imperador mogol, em prolongados conselhos de guerra, e os dias nas suas actividades predilectas: a caça, os jogos e a exibição vaidosa dos vastos recursos militares. “Com esses divertimentos temperava, por assim dizer, seus grandes cuidados e responsabilidades”, comenta o jesuíta.

Além dos muitos magos e adivinhos que trazia consigo para lhe dar conselhos e indicar o momento mais auspicioso para avançar, Acbar sempre mostrava prudência em todos os seus passos, pese a notória inferioridade do inimigo. Admirável prudência, quando dele, guerreiro habituado a sucessivas vitórias, se esperaria altiva arrogância. “Ele sabia muito bem, de facto, que as questões da batalha são incertas, que Marte é imparcial e que o inimigo, embora inferior em número, ainda é superior em coragem”, comenta, qual Sun Tzu, o nosso Monserrate.

Há que ter ainda em conta o facto de o inimigo de Acbar ser o seu próprio meio irmão, a quem, “embora tivesse sido enganado pelas mentiras de traidores e renegados, ainda amava”. Ao saber do recuo de Mirza Hakim, Acbar abordou o sacerdote e perguntou-lhe se o devia perseguir. Monserrate respondeu: “Fique onde está e não o persiga, pois ele é irmão de Vossa Alteza. Esse relacionamento é suficientemente forte para esfriar a sua raiva (…) a glória da misericórdia é maior do que a glória da vingança, visto que a vingança não pode ser alcançada excepto pelo dano e destruição de muitos inocentes”. Agradou de sobremaneira ao soberano semelhante resposta, e de imediato disse aos cortesãos: “Vejam como estes sacerdotes estão dispostos de coração à paz e à gentileza: pois eles são da opinião de que devemos poupar o fugitivo”.

Não obstante, temendo que o irmão reacendesse o conflito, Acbar resolveu enviar um contingente no seu encalço comandado pelo seu filho Murad – aquele que Monserrate educava –, que atravessaria o Indo “no dia seguinte à festa de São João Baptista, 1581”. Haviam declarado os adivinhos que “as estrelas prenunciavam um grande futuro” para aquele menino. Acompanhavam-no, entre outros, Qulij Khan, governador de Surate, velho experiente e robusto, fiel servidor de Acbar, mas “inimigo inveterado dos portugueses e da sua religião”, e Man Singh, outro chefe activo e enérgico. Associados a estes estavam vários líderes subordinados e seus destacamentos, num total de pelo menos mil cavaleiros, acrescidos dos quinhentos elefantes que Acbar considerou por bem adicionar. Despachada a expedição, tratou o soberano de reorganizar o grosso do exército aprontando-o para a anunciada marcha até Cabul.

Lembra Monserrate, desempenhando mais uma vez o papel de um estratega militar, que os mogóis nunca travavam uma batalha revelando todas as suas forças. Se se apresentavam com seis mil soldados, mantinham de certeza vinte mil escondidos e, na rectaguarda destes, outros milhares de reserva, “para que possam apoiar a guarda avançada em caso de revés, ou reuni-los, se derrotados”. Graças a tais provisões, frescas para a refrega, muitas vezes se conseguiam transformar derrotas anunciadas em vitórias repentinas.

Informado do exército do príncipe galgando terreno no seu rasto, Mirza Hakim resolveu pedir perdão e render-se incondicionalmente. Prometia jamais participar em “guerras, sedições e revoluções”. E para o comprovar enviava emissários, “dois velhos de longas barbas”, com cavalos e mulas como presentes; além de “somas consideráveis de dinheiro e mantimentos”. Recebeu-os com dignidade e autoridade régia Acbar, tendo a seu lado o primogénito e alguns filhos dos principais nobres. Enquanto ouvia a embaixada, gladiadores lutavam com espada e escudo, “e touros defrontavam-se”. Tudo isso havia sido arranjado de antemão para dar a impressão que Acbar não estava envolvido em questões militares, tão só se divertia como costumava fazer na sua corte. Pretendia mostrar aos emissários a quão pouca importância dava ao seu irmão, ciente “da superioridade do seu exército e da sua gente”. E como os despachos dos emissários de Mirza Hakim o satisfaziam, autorizou de imediato a sua partida. Só que, entretanto, enviara nova tropa, desta feita sob a responsabilidade do outro filho, Pahari, decidido a não levantar acampamento até que este chegasse junto de Murad, o irmão mais novo. Inquietos com a demora, ao que consta, alguns elementos do contingente principal incendiaram a floresta, onde se abasteciam de lenha os do acampamento, para obrigar o monarca a avançar. Muitos, no entanto, acreditavam ter sido o fogo ateado por partidários de Mirza Hakim. A conflagração enfureceu de tal forma Acbar que este ameaçou executar os responsáveis, caso fossem encontrados. Para aplacar aquela fúria, persuadiram-no alguns dos cortesãos com a possibilidade de ter sido acidentalmente queimada a floresta, “por descuido dos pastores”, e o processo de investigação do crime em curso foi encerrado.

Joaquim Magalhães de Castro

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