Um obstáculo chamado Indo
Depois do convívio com os “sadhus”, Acbar é recebido pelo governador da fortaleza de Rothas com um sumptuoso banquete. Não há muito, esse valoroso general que Monserrate designa de Joseph, defendera Rothas com firmeza contra os ataques de Mirza Hakim. Apesar da hospitalidade, a comitiva não se demorará aí muito tempo. No dia seguinte, levantado o acampamento, homens, cavalos, camelos e elefantes prosseguem ao longo do rio, correndo um risco permanente: pantanosas são as terras por onde caminham. Alerta Monserrate: “Se alguém entrar em tal lugar, afundar-se-á rapidamente. E quanto mais se esforça para sair, mais mortal é o perigo de ser engolido”.
Ao sexto dia, percorridas “estradas acidentadas e desfiladeiros estreitos”, sob um céu cerrado e o troar de tempestades acompanhadas de diluvianas chuvas, atingem uma grande planície onde está um estranho monumento. Trata-se da estupa budista de Mankiala, já na altura em avançada ruína. Dela diziam os locais ser o “pilar limite” do reino do hindu Ramchandra, ali estabelecido “há mais de mil anos”. Monserrate dá-se ao trabalho de lhe tomar as medidas, lembrando-nos que assenta “numa base quadrada de 2,10 metros de altura e três metros de largura”; uma base – recorde-se – dotada de degraus laterais. De forma circular e topo arredondado, habilmente decorado, mede a dita seis metros de altura. No fundo, um conjunto de grandes lajes talhadas, sem qualquer cimento ou betume a uni-las.
O exército de Acbar fará uma paragem na cidade de Rawat, habitada pelo feroz clã de punjabis, os gakhares, conhecidos por trocarem homens por cavalos, dando jus ao seu conhecido provérbio “escravos da Índia, cavalos da Pártia”. É árida a região compreendida entre Rothas e o Indo, de clima “tão severo e perigoso quanto o carácter dos seus habitantes”. Salienta o catalão que estes últimos, “embora nascidos deste lado do Indo”, diferiam substancialmente, tanto na cor como na fala, dos verdadeiros indianos. Refere ainda a sua baixa estatura, a largueza dos ombros, a robustez das pernas e as rugas a cobrirem-lhe os rostos, o que lhes dá um aspecto hostil. Em contrapartida, outra etnia local, a delzac, demonstra carácter gentil e amigável. Recompensada pela vasta e fértil região onde vive, “desprovida de belas árvores ou jardins”, é certo, mas com abundância de milho, leguminosas e erva para a pastagem. São os delzacs donos de rebanhos e manadas, alimentando-se de “ghi” (manteiga liquefeita) e leite. Ao contrário dos gakhares, tais pastores vivem em aldeias e a sua língua, “tal como é a de outros patanes”, ou seja, pashtuns (ou pastós), assemelha-se ao Castelhano – “tem algumas das mesmas palavras”, refere o catalão – o que não surpreende, pois ambos são idiomas indo-europeus.
Depois de ultrapassarem diversos ramos do Indo, que ao entrecruzarem-se formam inúmeras ilhas, é montado o acampamento numa “grande planície aberta, rica em rebanhos e bem abastecida com madeira e todos os suprimentos necessários”. As matas e florestas vizinhas funcionam como um irresistível íman para o imperador Acbar, sempre pronto a partir para uma nova caçada. É normal, pois, que a estada no local se prolongue por cinquenta dias. Nessa zona depara hoje o viandante com o imponente forte de Attock (apresenta-se numa colina em frente ao rio), mandado construir por Acbar aquando o seu regresso de Cabul, pois cedo se apercebeu o monarca mogol da importância estratégica do local.
Monserrate disserta depois acerca das características topográficas do Indo, “o maior de todos os rios indianos” graças à grande massa de água “colectada das neves derretidas dos Himalaias”. Além disso, recebe e leva até ao mar as águas de cinco grandes rios, todos eles já aqui mencionados. Informa o sacerdote que nas margens do Indo era possível encontrar grandes quantidades “do melhor e mais fino ouro”, perto da sua nascente e ao longo de todo o seu percurso serpenteante em vários meandros, entre desfiladeiros de montanhas e vales do Himalaia, “para o norte de Caspiria e Casiria e do país do Bothi ou Bothantes”. Dali, o poderoso caudal dirige-se para Oeste até alcançar as planícies, onde se divide “em oito ramos, que abrangem sete ilhas, além daquela em que o exército estava acampado”. Lembra António Moserrate que a força e a quantidade de água no rio é tal que até mesmo os elefantes tinham dificuldade em vadeá-lo. Segue depois a torrente para Sul e pelo caminho acolhe ainda as águas dos rios Cabul e Suat, “que se unem pouco antes de se juntarem ao Indo”, que, finalmente, desagua no mar “por sete bocas”. Entre Junho e meados de Agosto, o volume do Indo aumenta consideravelmente, pois à água da chuva junta-se a água resultante do derretimento da neve, e em tão grande quantidade que a “água doce pode ser vista a uma distância de quarenta milhas da costa”. Chamam ao Indo, os habitantes desta região, Nilabhus, ou seja, “água azul”, na língua persa. Não podia ser mais apropriado o nome, pois de tão límpido e profundo o leito é verdadeiramente de cor azul, correndo sempre com “grande força e rapidez”.
Joaquim Magalhães de Castro