PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 24

PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 24

A primeira informação sobre os tibetanos

Informa o padre António Monserrate que, a leste da fortaleza de Nagarkot, os vales interiores dos Himalaias são habitados por um povo selvagem e bárbaro “chamado bothi ou bothente”, isto é, tibetano. Eles não têm rei e vivem em clãs. Gente pacífica, inimiga da guerra, que busca sustento nas suas terras ricas “em vinho, trigo e muitas frutas europeias”. Abundam aí camelos, asnos selvagens e ovelhas, um tipo delas “que não tem juntas nas pernas e nas coxas”, sendo por isso facilmente capturada, e, uma vez em cativeiro, proporciona lã de excelente qualidade, “mais fina do que a seda”, da qual se confeccionam uns mui afamados xailes. Para se cobrir, usam os ditos bothias mantas de lã de camelo, que têm abundância; e por isso a vendem a gente de outros reinos. Nos mercados de Nagarkot, por exemplo. Envergam, tanto quanto possível, vestes de um tecido de feltro. Daquele “usado para chapéus”. E só as tiram quando estão inteiramente gastas ou quando, de “tão apodrecidas pelo suor”, se desfazem por si mesmas. Na cabeça, um boné cónico, feito do mesmo feltro. Quanto às mãos, rostos e pés, nada de lavagens. É – crença sua – sacrilégio contaminar tão claro e belo elemento: a preciosa água que nos mata a sede. O tibetano é monógamo. Mas tão só a esposa lhe dá dois ou três filhos, logo regressa à boa vida de solteiro. Em caso de falecimento de um dos cônjuges, permanece para sempre celibatário o cara metade. Nota ainda com satisfação o sacerdote a forte oposição à idolatria por parte dos tibetanos, embora aceitem o parecer dos astrólogos, “ou melhor, mágicos”. Sempre que alguém morre, é invariavelmente tida em conta a sua opinião. Saberá dizer-lhes o que fazer com o cadáver. Atirá-lo a um riacho, queimá-lo, ou deixá-lo em sítio ermo para que o devorem os pássaros ou as feras. Convém notar que tais práticas funerárias, chocantes para os nossos padrões morais, já não são usadas. Guardam-se porém religiosamente nos lares e nas salas obscuras dos mosteiros utensílios feitos de ossos humanos. Monserrate refere crânios a cumprir a função de xícaras, omoplatas a servirem de pratos, e fémures transformados em bainhas de punhais, “ou outras armas”.

Vem depois o aspecto físico dos bothias: gente branca, de estatura média, cabelos castanhos e rostos avermelhados. “Muitos deles têm olhos bonitos, de formato redondo”, garante o catalão.

Monserrate alerta o eventual futuro viajante para a presença de neve na região, “nas encostas dos Himalaias em direcção à Índia”, quase durante todo o ano. São excepções os meses de Junho, Julho, Agosto e Setembro, época de “extremo calor”. São muito piedosos e misericordiosos – o seu armamento resume-se a espadas curtas, arcos e flechas – esses bothis, amigos de esmolar e acolher os viajantes de modo gentil e hospitaleiro.

Entusiasmados com o que ouvem, Monserrate e companheiros tratam de confirmar a fiabilidade da notícia. E como prova ser verdadeira, arquitectam logo modo de viajar até essa região disfarçados de comerciantes, pois vêem nos bothias futuros conversos à fé cristã. Contudo, o destino e a missão da comitiva onde seguem depressa os leva a desistir da ideia.

Chegará à conclusão mais tarde Monserrate, numa observação final do seu “Comentário”, que a ausência de vestígios do Cristianismo em tão vasta área, “abrangendo tantas regiões diferentes”, deve-se à hostilidade dos muçulmanos em relação aos cristãos, “sua religião, seus edifícios e instituições sagradas”. Lembrará ele, erradamente, a existência de reinos cristãos na região na época em que as hordas de Tamerlão por ali passaram, alertando para as “relíquias do cristianismo” presentes ainda “nos recessos do Himalaia, onde os muçulmanos nunca penetraram”. Isto lhe diziam os sadhus, os homens santos hindus, “que são grandes viajantes”. Neles acredita Monserrate, embora os considere “testemunhas indignas de confiança, contando muitas falsidades francas e misturando-se um pouco de verdade com muita ficção”, esses sadhus, quando questionados pelos sacerdotes sobre o mistérios dos Himalaias.

É verdade ser a cordilheira bastante íngreme, difícil de escalar, e o topo plano e adequada à habitação humana. Verdade também haver aí, “na margem de um certo lago chamado pelos locais de Manasarovar”, uma cidade muito antiga, na qual vive uma raça de pessoas que se reúnem “num prédio especial a cada oito dias para oferecer os sacrifícios e orações que formam a sua religião”. Diz-se que os homens se sentam com as pernas cruzadas (como é o costume do País), do lado direito do edifício sagrado, e as mulheres do lado esquerdo. Num lugar mais alto senta-se um homem vestido com roupa de linho e diante dele está colocada uma mesa baixa com dois vasos de ouro, “um dos quais contém vinho e o outro pão”. Lê este homem algo de um livro, ao qual os outros respondem; em seguida, faz um discurso e, por fim, as pessoas levantam-se. Primeiro os homens, depois as mulheres, sem fazer barulho, religiosamente. Aproximam-se então do clérigo e recebem dele um pequeno pedaço de pão e um gole de vinho, voltando em seguida para os seus lugares. Concluída a cerimónia, “cada um regressa a casa”. Ora, confrontados com semelhante descrição norma seria deduzir a existência de um comunidade cristã nos Himalaias. E Monserrate e restantes padres da comitiva de Acbar ter-se-iam certificado disso, não fosse o objectivo e rota da comitiva ter frustrado o seu intuito. Seria, porém, a dita informação que levaria décadas mais tarde o padre António de Andrade e o leigo Manuel Marques a escalar os altas montanhas dos Himalaias e a chegar pela primeira vez ao planalto tibetano.

Joaquim Magalhães de Castro

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *