PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 19

PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 19

Uma corte imperial em marcha

Teremos doravante, da pena do padre António Monserrate, um relato pormenorizado do acampamento de Acbar, das suas forças, das cidades pelas quais passou, do seu avanço em terras além Indo e da entrada triunfante em Cabul. Um precioso documento que, como bem lembra Edward Maclagan, “nenhum futuro historiador de Acbar pode deixar de utilizar”. É precisamente pela sua relevância que iremos acompanhar com algum detalhe essa espécie de diário que o religioso catalão nos legou.

O aquartelamento de Acbar estava, por vontade do próprio, organizado ao modo mongol. Era erguida a tenda principal num espaço amplo, apresentando à sua direita os pavilhões do filho mais velho e dos nobres mais próximos, e à sua esquerda os do segundo filho e respectivos auxiliares – aqui se acomodava Monserrate. Só depois, se aglomeravam as tendas da soldadesca agrupadas o mais próximo possível da dos respectivos oficiais. Havia um mercado muitíssimo bem guarnecido que servia apenas o rei, os príncipes e “os grande da nobreza”. E como ali se podia encontrar todo o tipo de produtos, mais parecia – diz Monserrate – “pertencer a alguma cidade rica em vez de a um acampamento”. De resto, esse e os restantes mercados do vasto bivaque, estavam estrategicamente posicionados de modo a que qualquer estranho que ali chegasse depressa se familiarizasse com eles. Esses bazares eram designados urdu, nome derivado do vocábulo turco ordu (exército) e ali germinaria um linguajar próprio, uma “língua do acampamento”. Curiosamente, o Urdu é hoje o idioma oficial do Paquistão, sendo falado por milhões de pessoas.

Durante o avanço do exército era agrupada toda a artilharia defronte dos aposentos reais, “na parte mais ampla do terreno aberto”, tendo o imperador à sua disposição 28 canhões de campanha, “inúteis em caso de um cerco”, lembra Monserrate, pois eram de tamanho bastante reduzido. Nesse mesmo local, uma tocha acesa todas as noites no topo de um mastro servia de ponto de referência. Caso surgisse algum tumulto, todos corriam imediatamente para ali, “como se fosse o coração e a cabeça de todo o acampamento”.

Acbar alojava-se em dois pavilhões idênticos em tamanho e aparência e com cortinas em vez de paredes. Enquanto um era montado adiante, ele ocupava o outro. Além disso, o monarca tinha à sua disposição, à boa maneira mongol, uma casa comum, “com degraus e até um telhado”, transportada numa carroça puxada por juntas de bois.

Fiel ao aforismo “mantém os teus amigos por perto e os teus inimigos ainda mais perto”, Acbar fez questão que Shah Mansur (de novo em liberdade) o acompanhasse, para que este – ironiza Monserrate – “não aumentasse os cuidados da rainha-mãe tentando destruir o império com uma revolução”.

O exército começou a avançar a 8 de Fevereiro de 1581, e no dia seguinte já Acbar estava numa caçada, como era seu hábito. Foram dadas ordens para que ninguém se aproximasse da linha de marcha, evitando assim que se espantassem as feras. Monserrate refere que estas se assemelhavam às da Europa, à excepção de uma tal “vaca azul”, muito semelhante a um veado, embora mais pequeno. Os cães de caça, “como os das raças gaulesa e alana”, eram desconhecidos naquelas paragens. Gastava por isso Acbar somas enormes para manter número incontável de panteras caçadoras ao cuidado de tratadores que as vendavam durante a viagem – “para que não possam atacar ninguém no caminho” – e privavam-nas de qualquer alimento durante longos períodos de tempo. Assim, uma vez soltas, corriam vorazmente sobre as presas. Monserrate destaca a falta de interesse dos mogóis para com a falcoaria, embora ficasse bem ao monarca fazer-se acompanhar por falcoeiros “com muitos pássaros nos pulsos, alimentados com corvos para economizar despesas”.

Oficiais especializados seguiam de perto o imperador medindo diariamente a distância da marcha com a ajuda de uma vara de dez pés. Foi com base nessas medições que se pode calcular a área das províncias e as distâncias entre os diferentes lugares do império, facilmente circulando, desde então, os éditos reais e os alertas em situações de emergência. Duzentas medidas de uma vara de três metros correspondiam a um coroo (unidade de medida persa) ou a um kos (unidade de medida indiana), ou seja, sensivelmente duas milhas.

Dentro das fronteiras do império, o exército não avançava em posição de batalha, à excepção de alguns membros da guarda pessoal do rei, sempre em estado de alerta, mantendo uma formação de meia-lua. Sempre que Acbar parava, aguardavam-no em duas fileiras. Num dos flancos estavam os elefantes, cuidadosamente protegidos por armaduras. No outro, arqueiros montados, piqueiros e tropa com armas leves, pois os mogóis não possuíam cavalaria pesada. Na frente, seguiam tamborileiros e corneteiros, montados em elefantes. Todos em silêncio, excepto um que soava o tambor a intervalos curtos, “talvez a cada dez passos, com um ritmo lento e digno”. Batedores seguiam na vanguarda afastando todos os que encontravam pelo caminho. As rainhas, ocultas em palanquins cobertos ricamente decorados, cavalgavam elefantes fêmeas, escoltadas por “quinhentos velhos de aparência digna e venerável”. Havia o maior cuidado em manter à distância todos os que se encontravam na fila das mulheres de Acbar. Ou seja, eram aqui aplicados iguais cuidados aos do serralho. As damas de companhia seguiam em camelos, sob guarda-sóis brancos. Havia ainda um corpo de guarda encarregado do tesouro, “transportado por elefantes e camelos”, sendo que o resto da bagagem, “mobília e os pertences do Rei” seguia em carroças de duas rodas puxadas por mulas.

Joaquim Magalhães de Castro

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