Artimanhas e vingança de Acbar
Enquanto no coração do império tentava Acbar serenar os ânimos, a leste, o seu meio irmão Mirza Hakim avançava confiante rumo a Lahore com uma cavalaria de quinze mil. Acoitado na fortaleza de Rohtas, o senhor daquela vasta cidade, Mirza Yusuf Khan, fidelíssimo ao imperador, recusou entregar a apetecida presa assim de mão beijada. Mirza Hakim, que dera ordens estritas às suas tropas para que não fizessem mal a ninguém – “nenhum campo deveria ser devastado, nenhuma pessoa deveria ser molestada”, sublinha Monserrate –, em vão enviou emissários ao governador para o tentar demover. Mais: cedo se apercebeu que nenhum dos grandes senhores estava disposto a abandonar o partido de Acbar, e nem aqueles que o haviam aliciado para aquela aventura cumpriram as promessas feitas, “pois deles não recebeu quaisquer reforços”.
Em boa verdade, Mirza, falho de suprimentos, tinha plena consciência dos imensamente maiores recursos do parente, antevendo uma invasão fadada ao fracasso. Encorajava-o, no entanto, Farid Khan, seu comandante-chefe, general enérgico e experiente que guardava rancor a Acbar. Informara-se Hakim, através dos seus espiões, que aquele, embora inteirado da invasão em curso, não tinha preparado a tropa, demostrando assim profundo desprezo pelo inimigo. “Pensava nele [Mirza Hakim] tanto quanto uma águia de um mosquito”, nota o nosso jesuíta.
O monarca mogol acabaria por enviar emissários para propor um encontro amigável com o irmão, mas o seu verdadeiro motivo era atraí-lo à capital e aí prendê-lo. Ao saber que Acbar dera ordens para que se preparasse uma expedição de caça, Hakim optou pela fuga. E tão atabalhoada foi a retirada que os caudalosos rios, semanas antes atravessados em segurança, “pois não havia pontes ou barcos disponíveis”, ceifariam a vida a muitos dos homens do nababo de Cabul. Só no Chandrabhaga afogaram-se quatrocentos cavaleiros. Outros tantos se perderam nas travessias do Jhelum e do Indo. “Tal foi a infeliz conclusão de uma invasão realizada de maneira desfavorável por expressa inimizade à religião de Cristo”, comenta, triunfante, António Monserrate. Teria ficado bastante satisfeito Mirza Hakim se tais desastres representassem o fim daquela guerra fratricida; mas, infelizmente para ele, ainda mal começara. Acbar, “o Grande”, não esquecera a afronta. E com astúcia preparava já a desforra. Começou por ordenar a libertação de Shah Mansur, “desculpando-lhe” a segunda traição. Aliás, escondera dele o facto “de que havia aprendido tudo sobre a conspiração”, fingindo que o detinha apenas por suspeita. Na realidade, os dados estavam lançados. Decidira o monarca mogol eliminar o reincidente traidor e, depois disso, fazer guerra ao irmão. Para isso enviou um nobre de confiança, um certo Mirza Aziz Koka, à frente do exército que galgou para Bengala carregando estandartes negros, “o sinal da guerra até a morte” que Tamerlão, “o Manco” – antepassado dos reis mogóis – costumava usar em batalha. Depressa foi aniquilado o inimigo e a peleja terminou com a execução punitiva de muitos dos conspiradores. Quanto a Mirza Hakim, decide o imperador que lhe há de pagar com a mesma moeda. Se aquele se tinha dado ao trabalho de vir até Lahore, ele iria a Cabul e aí venceria o irmão, no próprio reduto. Decidido ficara também que o perseguiria, caso fugisse.
Quando tudo estava pronto para o início da campanha, os sacerdotes jesuítas abeiraram-se do imperador prontos a “compartilhar suas viagens e seus trabalhos”, caso fosse essa a vontade de Sua Majestade. Acbar agradeceu, ampla prova tinha da boa vontade dos missionários para com ele, mas no seu entender “os homens de religião, devotados à paz e à comodidade literária e às meditações divinas, não deveriam ser afastados das suas actividades prazerosas”. Deixá-los-ia sob a protecção da rainha-mãe, para que continuassem a ser tratados com toda a gentileza e hospitalidade, pedindo-lhes que aceitassem a decisão sem objecções e orassem por ele. Tranquilizaram-no os sacerdotes. Continuamente o tinham “em seus corações” e obedeceriam às suas ordens. No dia seguinte, porém, Acbar dirigiu-se à sala de aula onde António Monserrate instruia Murad (um dos filhos de Acbar) e disse-lhes que fizessem as bagagens, pois partiriam em viagem com ele.
Como de costume, Acbar anunciou uma campanha de caça, ordenando que o pavilhão real fosse erguido a seis quilómetros da cidade. Entretanto, havia arranjos a fazer para assegurar o governo do império durante a sua ausência. A mãe – na companhia do neto Daniel e da neta Begoum, benjamins do imperador, e uma guarnição de doze mil – supervisionaria as províncias e as acções dos novos vice-reis de Bengala e de Gedrósia (actual Baluchistão), contando o primeiro com um exército de vinte mil homens, “para poder continuar a conduzir a guerra em Gangaris (Bengala)”, e o segundo, com dez mil. Isto, e guarnições adequadas nas principais cidades. Com Acbar viajaria o filho mais velho (Selim, futuro Jahangir, seu sucessor), Murad e as duas filhas mais velhas, além de algumas das esposas principais. O séquito incluía ainda “grandes quantidade de ouro e prata” e outras provisões carregadas em elefantes e camelos. Enfim, era todo um cenário. No dia da partida, a rainha-mãe acompanhou Acbar e com ele passou dois dias no acampamento, “num imenso pavilhão branco”, tal como Rodolfo Acquaviva e Francisco Henrique, os companheiros de Monserrate, que lhe desejaram boa viagem.
Joaquim Magalhães de Castro