PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 10

PRIMEIRAS MISSÕES CATÓLICAS NO NORTE DA ÍNDIA – 10

As maravilhas da cidade de Mandu

Dois dias depois de cruzar o Narmada eis a comitiva que temos vindo a seguir às portas da grande cidade de Mandu, cuja antiga importância está bem patente no “imenso circuito das suas muralhas, a imponência dos edifícios que permanecem de pé e as ruínas daqueles que caíram”. Não podia ser mais apropriada a descrição que nos faz o padre Monserrate. Ainda hoje é essa a impressão que nos provoca a cidade apesar de nela viverem menos de dez mil pessoas.

Mandu, devido à sua posição estratégica e às defesas naturais, desfiladeiros profundos e penhascos inacessíveis a separar pequenas mesetas habitáveis, foi desde sempre importante posto avançado e o seu passado marcial é bem aquilatado pela altiva muralha com ameias cuja extensão Monserrate indica com exacta precisão: “quase 24 milhas”, pontuadas hoje por doze portões mas que, segundo nos conta o jesuíta, na altura contava apenas com uma entrada muito estreita reforçada com “cinco muros sobrepostos no topo de um acesso íngreme” de forma a torná-la inexpugnável. Só a falta de víveres a podia subjugar, pois no que toca a água sobejavam tanques, nascentes e poços.

Monserrate não arrisca uma data para a sua fundação, queixando-se da escassez de fontes e da pouca fiabilidade das existentes. Porém, a julgar pela estrutura das paredes e a modernidade dos edifícios, não tinha dúvidas que a cidade fora construída por muçulmanos. Enganava-se. Na realidade, a história de Mandu remonta ao Século VI, tendo atingido grande relevância durante a dinastia hindu dos Paramaras, quatro século depois. Quando Tamerlão conquistou Deli, em 1401, já Mandu caíra em mãos muçulmanas. Afegãs, para sermos exactos. E nelas permaneceria durante séculos, mudando apenas a etnia do novo senhor. Monserrate insiste nos “mongóis” como seus construtores, mas “mongóis de uma tribo diferente daquela que se tornou tão famosa em nossa época”. Diz ele que “há duzentos anos os mongóis, em busca de um novo país para ocupar, deixaram seus acampamentos ancestrais, invadiram a Índia e estabeleceram-se em Mandu, tanto porque é por natureza facilmente defendido como porque é o parte mais fértil do distrito e, na verdade, de toda a província de Malwa”.

Se bem que não haja notícia dos homens de Tamerlão em cena nestas paragens por essa altura, Monserrate acerta ao falar da vitória dos afegãos – os patanes, como lhe chama –, após terem sitiado durante sete anos os habitantes de Mandu obrigando-os a renderem-se pela fome. No processo, o rei patane, ao comando do exército sitiante – isto é, Hoshang Shah –, sabendo que a campanha iria demorar convocou pedreiros, ferreiros, empreiteiros e operários, e ordenou-lhes que erguessem muros, defesas e casas para os soldados “viverem em toda uma cidade – no mesmo lugar, perto do portão nas muralhas, onde estava seu acampamento aquele tempo arremessado”. Ou seja, edificou uma nova cidade às portas da cidade sitiada. Deu ordens estritas também para que as provisões destinadas à população fossem interceptadas pela cavalaria, que ocupava todas as estradas e “especialmente um caminho que se aproximava da cidade por trás”, de tão íngreme nem de gatas os soldados podiam escalá-lo.

Depois de capturada Mandu, os edifícios intramuros foram totalmente arrasados e em seu lugar surgiu uma nova urbe, baptizada de Shadiabad, “a cidade da alegria”. Explicado está o distintivo estilo arquitectónico afegão em muito dos actuais monumentos. Entre os despojos da época consta um fragmento de canhão ao qual se atribui qualidades mágicas. Está manchado com óleo e tingido de vermelho. É curioso, em Maumere, nas Flores, os locais fazem o mesmo com os canhões portugueses ali existentes… Monserrate alude a um grande palácio, “a casa dos antigos reis”, onde vivia o governador da província. Trata-se do Palácio Hindola, usado como sala de audiências, construído durante o reinado de Hoshang Shah, por volta de 1425. Fala depois, com apurada precisão matemática – faz medições exactas, o que faz dele arqueólogo “avant la lettre” –, de uma tumba real meio acabada, “que suponho que nunca será concluída”, no meio de uma plataforma quadrada “que se eleva cinco côvados acima do solo e com 25 metros de largura” rodeada por arcos e colunatas e coroada por uma cúpula. Nos quatro cantos da plataforma erguem-se minaretes, com sete andares de altura e formato octogonal e janelas direccionadas para os quatro pontos cardeais, de onde é feita a chamada muçulmana para a oração. Em frente estava outro grande edifício “de magnificência e custo semelhante”, que só pode ser a Jama Masjid, “a grande mesquita”, notável exemplo da arquitectura afegã, erguido em 1405.

A referida tumba é a de Hoshang Shah, se bem que Monserrate garanta que estão ali sepultados “três reis mongóis e também o tutor de um desses reis”. Há ainda a referência a um templo que se assemelha a uma igreja cristã, afinal a Torre da Vitória construída pelo sultão Mahmud Khalji em 1443, para comemorar o seu triunfo sobre o senhor de Chitor, o rajput Rana Kumbha. E por que a compara a uma igreja? Porque os telhados eram em arco, “nos quais podem ser colocados altares”, e os tectos abobadados, “que se abrem e formam uma passagem para o santuário do altar-mor”.

Monserrate termina a detalhada análise mencionando um enorme cemitério (com vários quilómetros de extensão) e louvando os muçulmanos pela atenção que dão à memória dos seus mortos, honrando-os “com túmulos elaboradamente construídos”, o que não acontece com “certas criaturas abandonadas da nossa época”. Esta, certamente uma farpa dirigida aos cristãos tresmalhados.

Joaquim Magalhães de Castro

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