Porque Deus falou por meio dos homens

O Cânon da Bíblia

A Sagrada Escritura é o conjunto dos livros escritos por inspiração divina. Nesses livros, Deus revela-Se e dá a conhecer o mistério da sua vontade. Divide-se em dois grandes conjuntos: o Antigo Testamento e o Novo Testamento. O Antigo Testamento (AT) compreende a revelação feita por Deus antes da Encarnação de Jesus Cristo. O Novo Testamento (NT) abarca a revelação efectuada de forma directa por Jesus Cristo, transmitida pelos Apóstolos e outros Autores. Deus falou aos homens através do Seu Filho, mas também por homens por Ele escolhidos, o que humaniza a Sagrada Escritura, sem que esta deixe de ser Palavra de Deus. Como sucedeu com o Filho quando encarnou, que não deixou nunca de ser Deus. A Palavra de Deus revelada aos homens, transmitida por estes, sofre porém as limitações e condicionamentos próprios da linguagem humana. Estes condicionamentos são de tempo (contexto e circunstâncias históricas, tempo em que foram escritos os textos), de espaço (geografias várias: mundo helénico, Palestina, Império Romano), de povo (livros escritos por Judeus, povo Semita, com as suas idiossincrasias próprias) e de cultura (culturas, mentalidades diferentes nos vários autores, com séculos de diferença entre estes).

A revelação no AT efectua-se através da Tradição e da Sagrada Escritura. Depois, no NT, temos uma nova revelação (Evangelho), com Cristo. Os Apóstolos serão os transmissores desta nova Palavra. Surge assim a Tradição Apostólica, fixada por escrito pelos Evangelistas e outros autores sagrados. Ou seja, temos a união e concordância plena da Sagrada Tradição e da Sagrada Escritura, a partir de uma fonte divina e com o mesmo fim, como plasma a Constituição Verbum Dei, 9, do Concílio Vaticano II. A fonte divina, ou seja, a Inspiração, é o que distingue a Bíblia de todos os outros livros humanos. Deus é o Autor da Sagrada Escritura, os homens o seu instrumento, proclamavam os Padres antigos, como S. Jerónimo, figura importante na fixação dos textos sagrados. Nesse dogma de fé, que é a autoria sagrada da Bíblia, logo da verdade que, por isso, dela advém e se transmite, a Igreja depositou a sua aceitação e a proclamou, ao longo dos séculos, como seu estribo e fundamento, conforme se viu na citada Verbum Dei, entre outros textos. A verdade da Bíblia resulta pois dessa inspiração, mas também do todo que são os textos sagrados, assumindo-se como algo concreto e não apenas especulativo. Mas a Bíblia, refira-se, não é um ditado de Deus ao homem, nem este é sujeito passivo. É o resultado da confiança dEle nas capacidades e liberdade criativa do homem, por acção do Espírito Santo. O homem deixa a sua marca também nas Escrituras.

A Bíblia, manifestação da Palavra de Deus através dos homens, tem géneros literários e sentidos bíblicos. Géneros históricos, proféticos, poéticos, próprios dos contextos do seu tempo, que são importantes para a interpretação da Bíblia. Como são os diversos sentidos bíblicos. Literal, ou seja, o que o Autor quis dar ao texto; pleno, ou o significado mais profundo e intrínseco do texto; típico, visível nas prefigurações ou prenúncios do AT que se concretizam no NT (por exemplo, o maná do livro do Êxodo 16,14, como prefiguração da Eucaristia em Jo 6); acomodatício, quando se dá um sentido diferente do que o Autor quis dar, visível na liturgia e na pregação (a relação de textos sabedoria divina com a Virgem Maria, por exemplo). Os livros da Bíblia, no AT como no NT, são históricos, sapienciais e proféticos, de acordo com o género literário do texto.

Com espírito de fé, de forma aberta e em paz, a Sagrada Escritura deve ser lida e interpretada com o mesmo Espírito com que foi escrita. Assim proclama o Concílio Vaticano II para a interpretação harmoniosa e preparatória, não definitiva nem em forma de julgamento.

A Bíblia é a fonte divina e espiritual da Igreja. Mas como chegámos a este livro que é a Bíblia? Através do Cânon Bíblico. A palavra cânon não é mencionada na Bíblia, embora se possa antever em 1Rs 14.15 e Job 40.21. Originalmente significava “cana”, “junco” ou “talo” de papiro. Estas canas eram usadas como réguas ou instrumentos para fazer linhas rectas, pelo que “cânon” passou a significar “medida” ou “cana de medição”. O termo cânon foi empregado pela primeira vez como expressão teológica referente às Escrituras, por S. Atanásio, bispo de Alexandria, na carta pascal às igrejas em que descreveu o conteúdo do Novo Testamento (307 d.C.). Etimologicamente, o termo vem do Hebraico keneh, em Grego kanón (κανὡν). O Cânon é a lista ou colecção de livros que passaram pelo teste de autenticidade e autoridade por parte da Igreja.

Foi no Concílio de Roma de 382, no pontificado do Papa S. Dâmaso I, que a Igreja Católica instituiu o Cânon Bíblico com a lista do NT de San Atanásio e os livros do AT da Versão dos LXX (“Setenta”, ou Septuaginta). Esta versão foi traduzida do Hebraico (e Aramaico) e do Grego para o Latim por São Jerónimo (a designada Vulgata), a encargo daquele Papa, a partir de 382, tradução que na prática seria a primeira Bíblia no sentido concreto e pleno da palavra. Posteriormente, os Concílios regionais de Hipona III, em 393, Cartago III em 397 e Cartago IV em 419, nos quais esteve presente S. Agostinho de Hipona, aprovaram definitivamente o dito cânon (lista ou “inventário”). Em 405 esta lista foi enviada pelo Papa S. Inocêncio I ao bispo Exupério de Toulouse (na Gália, actual França), onde aparece então o Cânon Bíblico com os 73 livros então existentes. O Concílio de Trento (1545-63) fixou definitivamente o Cânon Bíblico, declarando-o como dogma. De fora ficam os livros apócrifos (do Grego απόκρυφος, em Latim apocryphus, que significa “oculto”), também conhecidos como Livros Pseudo-Canónicos, são os textos escritos por comunidades cristãs e pré-cristãs (há apócrifos do Antigo Testamento) nos quais os primeiros não reconheceram a autenticidade da Pessoa de Jesus nem os Seus ensinamentos, sendo excluídos no Cânon Bíblico. Por exemplo, os textos gnósticos de Nag Hammadi (1945) compreendem alguns livros não canónicos, como o Evangelho de Tomé. Como os textos de Massada ou do Mar Morto, revelam, para o Antigo Testamento ou para o Cânon judaico várias interrogações.

Existem outros cânones bíblicos, como o Copta, o Ortodoxo, o Protestante, o Arménio, o Siríaco ou o Etíope.

 Vítor Teixeira

Universidade de São José

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