Pau de jacarandá oriental
O exterior do Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro, é marcado pela simetria, com divisões verticais e horizontais em cantaria do centro da fachada e interior bastante decorado, coberto por talha barroca, características, de resto, da arquitectura brasileira. Entre os elementos mais importantes do acervo monástico, contam-se lampadários de prata de 227 quilos cada, uma imagem da virgem de Monserrat, a padroeira do mosteiro, e uma imagem de São Bento do final do século XVII, um órgão considerado dos melhores do Brasil e uma valiosíssima biblioteca.
Em 1601, o governador-geral do Brasil, Francisco de Sousa, pediu aos monges que trocasse o patrocínio para Nossa Senhora de Monserrat, prestando assim homenagem a Filipe III, que governava as duas nações ibéricas. Na sequência disso todos os padroeiros dos mosteiros beneditinos seriam trocados pela virgem de Monserrat, só o de Salvador voltaria adoptar o patrocínio de São Sebastião, até hoje.
CANTO GREGORIANO
Diariamente, várias pessoas deslocam-se à igreja da casa para apreciar as vésperas, cantados ao estilo gregoriano pelos monges residentes (umas duas dezenas), o que em si é uma atracção turística. Mas o melhor mesmo é assistir à missa solene de Domingo, às nove e meia da manhã, ou estar por cá no Natal, durante a Missa do Galo, ou nas celebrações da Semana Santa.
Porque se acendem então todas as luzes, esta é a melhor altura para apreciar as tonalidades dos dourados e vermelhos que preenchem tecto e paredes, que da sua base à abóbada estão revestidas de ornatos, pinturas e estatuária, numa policromia que nos deixa rendidos. O magnífico revestimento em talha dourada é da responsabilidade de Frei Domingos da Conceição da Silva, que antes de meter mãos à obra idealizou o trabalho numa maqueta. Em absoluto contraste com este fausto, “uma marca absoluta na evolução da talha brasileira”, segundo os entendidos, a fachada principal é bastante simples, na linha monástica tradicional.
Frei Mauro, sempre muito prestável, deixa-me aos cuidados de um outro frade, Silvério de seu nome, para que me mostre o mosteiro por dentro. Começamos pelo claustro, com um jardim e algumas árvores, onde continuam a ser enterrados os irmãos quando morrem. Os beneditinos do Rio de Janeiro são os únicos autorizados a fazê-lo, pois foram durante séculos os educadores oficiais da família real brasileira.
O Ministério da Saúde proíbe que se enterrem pessoas nos mosteiros, «para evitar riscos de epidemia», mas permite que se faça a exumação dos restos mortais que são transferidos para um ossário.
«– Foi-nos concedido o título de dom», lembra Silvério, a propósito de outro dos privilégios que distingue os beneditinos do Rio dos restantes, «que são frades apenas».
As datas nas lápides de mármore vão de1767 a 1978. Numa delas, leio: “Mueller Portman, falecido em 2006”.
«– Foi o último monge estrangeiro. Agora só temos cá brasileiros», informa o meu anfitrião, ironizando logo de seguida: «– Bem, não é bem assim. Temos aqui alguns mineiros…»
É conhecida a rivalidade entre os cariocas e os nativos de Minas Gerais.
A MAIOR BIBLIOTECA
No primeiro andar, em toda a área do claustro, funciona a maior biblioteca da América Latina, «não em número de livros mas de títulos», como ressalva o beneditino.
Entramos depois no edifício propriamente dito, através do corredor onde estão as celas dos monges, com nome de santos gravados na ombreira da porta.
«– Esta pertencia ao padre Estêvão, o nosso maior teólogo, homem muito capaz», diz Silvério, apontado para uma das celas.
Junto à escada que conduz ao primeiro andar está o sino que lembra as horas das orações, «todos dias às quatro e meia da manhã».
O frade abre depois a porta que dá acesso a uma varanda com vista sobre a Baía de Guanabara e a Ilha das Cobras. Outrora «uma das senzalas da ordem» esta ilha foi aterrada e tem hoje uma forma quase rectangular. Uma ponte liga-a a cidade, e uma outra, em forma de esquadro, à pequeníssima Ilha Fiscal. Há guindastes por todos os lados e um grande edifício de finais do século XIX. Dos tempos de outrora resta uma pequeníssima mancha verde, «o Castelinho». Era ali que andariam as cobras, o justificativo da designação da ilha. Duvido que sobrevive alguma, mas nunca se sabe.
Entre a Ilha das Cobras e o pontão de Mauá, num estaleiro naval, estão dois submarinos e dois navios de guerra, entre várias outras embarcações. Com a ajuda da lente de 200 milímetros da minha máquina fotográfica posso ler-lhes os nomes pintados no casco: “Tupi” e “Tamoio”, S30 e S 31, respectivamente. Estes são os nomes de duas das tribos com maior expressão no Brasil.
«– Tudo aquilo era propriedade nossa que ao longo do tempo nos foi retirada pela marinha», queixa-se o frade, referindo-se a uma época em que tudo o que ouvia no mosteiro era o marejar das águas. Hoje, é preciso fechar todas as janelas e só a extrema grossura das paredes evita a entrada de ruídos do trânsito que é contínuo.
«– A água do mar chegava a bater nas fundações do mosteiro», comenta Silvério.
O aterro permitiu a construção de mais uns edifícios com telhados de zinco e de um viaduto movimentadíssimo. Ao longe, avista-se, quase junto à ponte de Niterói, uma ilhota, com um aspecto artificial, que reúne um conjunto de bonitos edifícios coloniais rodeados por árvores. «– Também pertence à marinha brasileira», informa o frade.
INFLUÊNCIAS DE MACAU
O cruzeiro Costa Mágica, com o pavilhão da União Europeia desenhado no casco, acaba de zarpar do cais do porto e prepara-se para rumar em direcção à Ilha de Paquetá. Passará no seu percurso na zona de aproximação ao aeroporto de Santos Dummont, o mais pequeno de Rio de Janeiro. Por falar nele, aí estão alguns aviões que se preparam para aterrar, uns atrás dos outros com poucos minutos de diferença.
«– Vi alguns deles caírem à água», comenta Silvério com um enigmático sorriso.
De facto, não parece fácil meter uma aeronave num tão pequeno pedaço de terra.
Frei Mauro junta-se a nós para visitarmos uma pequena capela com cortinas carmesim, paredes de talha dourada e tecto de pranchas de madeira azuis, como os tectos das casas antigas. Há ainda estátuas e relicários, de um lado e do outro do altar. De salientar uma tíbia guardada dentro de um molde de uma perna em talha dourada, visível através de um pequeníssimo vidro.
«– Pertence a São Vitorio», garante Frei Mauro.
Quanto aos dois pedaços de osso com os nomes S. Paulini e S. Modestini, trata-se, nas palavras do beneditino, «de relíquias trazidas de Roma, presenteadas ao bispo D. João da Madre de Deus no início de século XVIII».
São muitos os tesouros pertencentes a este convento fundado por esses dois leigos portugueses que numa fase adiantada da sua vida decidiram tornar-se monges.
Frei Mauro destaca a imagem da Sagrada Família, «da autoria de Frei António do Desterro, nascido em Viana do Castelo», um quadro da autoria de José de Oliveira Rosa, «o precursor da escola fluminense de pintura», e, ciente do local onde habitualmente eu resido, chama-me a atenção para alguma da mobília em pau de jacarandá da sacristia. Objectos que, segundo ele, «sofreram influências de Macau». Esta influência oriental, sobretudo no traje de muitas das estátuas religiosas, tem sido um denominador comum nesta minha viagem sul-americana. Nada de surpreendente, já que o Brasil foi durante muito tempo ponto de escala obrigatório na rota para as Índias. Na ida e na volta.
Joaquim Magalhães de Castro