POR TERRAS DE ARRACÃO – 7

POR TERRAS DE ARRACÃO – 7

A rendição e saque de Martavão

Em Maio de 1541, após um cerco de quase nove meses, as forças navais de Toungoo lideradas pelo almirante Smim Payu desferiram o golpe de misericórdia nas hostes dos mon. De pouco, verdade seja dita, serviram as sete embarcações portuguesas destacadas no porto de Martavão. Quanto ao desfecho da batalha, à semelhança de outros capítulos nesse complexo e alargado conflito intestino, divergem radicalmente as fontes. Enquanto as crónicas coevas locais nos apresentam um Saw Binnya atlético e corajoso, liderando a tropa no dorso de um elefante de guerra, incansável na resistência até à sua captura pelo comandante Nanda Kyaw Thu, Fernão Mendes Pinto fala-nos de um monarca em desespero de causa (dois dos seus capitães, com quatro mil homens, tinham passado para o campo inimigo, e no horizonte anunciavam-se motins intramuros) a optar pela rendição inglória. E voltará a fazer um pedido, desta feita ao general Bayinnaung, placa giratória e motor de todas as operações. Em troca da sua vida e a da sua família renegava toda a riqueza e prometia enclausurar-se num mosteiro.

Mendes Pinto, uma vez mais, atribuí características negativas ao rei birmanês, dizendo-nos que ele falsamente sossegara o rival e sem demora montara o cenário perfeito para lhe infligir a maior das humilhações, aproveitando a ocasião para demonstrar todo o seu poder e glória. A minuciosa descrição de Mendes Pinto é digna de um épico de Hollywood, essa mesquinha, tendenciosa e autista máquina de fazer sonhos que ostensivamente continua a ignorar a história do povo que mais cenários e guiões cinematográficos proporcionou ao longo de toda a epopeia da humanidade. Ordenou o Rei Bramá que fossem erguidas as tendas de campanha, “de fino pano”, do seu quartel general e as rodeassem com fileiras de elefantes, toda a cavalaria e os batalhões com dezenas de milhares de peões birmanes e siameses, devidamente uniformizados e ostentando pendões coloridos, tudo isto ao som de trombetas e címbalos e uma enorme gritaria. Mandou depois alinhar a tropa estrangeira ao seu serviço, atribuindo aos portugueses o lugar de honra “junto à porta da cidade por onde Chau Bainhá devia sair”, em frente dos arménios, dos janízaros e turcos, e da demais turbamulta nascida entre a Grécia e a Abissínia, a Pérsia e a Tartária, o Achém e as Celebes, o Luzão e a Papua, enfim, gente de todas as raças e feitios do Oriente Distante e do Oriente Próximo, prova do quão atractiva era a actividade de mercenário em geografias populosas e com guerras permanentes como aquela.

Num dos seus relatórios, o visitador jesuíta Nicolau Pimenta refere doze diferentes monarquias nesta região, incluindo o próprio Sião, que em determinado momento esteve subjugado ao reino do Pegu. Em termos actuais estamos a falar de uma grande extensão do subcontinente asiático que se estende desde o actual Bangladesh até praticamente à Malásia, já naquela época com muitos milhões de habitantes.

Ao som do disparo de uma bombarda deu-se início ao desfile da vitória de Tabin Shwehti, com a presença dos príncipes e rajás locais seus vassalos, seguidos das entidades eclesiásticas com o superior dos monges de Moulmein, “homem tido como santo”, no papel de intermediário e consolador da mulher e dos filhos de Saw Binnya que o acompanhavam, assim como as consortes do palácio, ladeadas de grande cópia de monges descalços que iam rezando ao longo do trajecto, e ainda algumas centenas de cavaleiros birmanes a servir de tampão entre estes e o deposto vice-rei de Martavão montado numa elefanta pequena, “em sinal de pobreza e desprezo do mundo”, envergando uma simples “cabaia de veludo preto muito comprida”, e com a cabeça, barba e sobrancelhas rapadas. Ao pescoço, qual Egas Moniz oriental, Saw Binnya trazia uma corda de cairo bastante puída, “para assim com ela se entregar a El-Rei”. O escritor realça a imensa tristeza daquele “homem de sessenta e dois anos, grande de corpo e boa figura, os olhos cansados e tristes, a fisionomia grave e severa, e o aspecto de príncipe generoso”.

Ao passar junto dos setecentos portugueses, “todos vestidos de festa, com as suas couras cortadas, e gorras nas cabeças com as suas plumas, e todos com os seus arcabuzes às costas, e João Caeiro no meio deles, vestido de cetim carmesim”, Saw Binnya desviou o olhar e em alto e bom som manifestou publicamente o quão magoado se sentia pela ingratidão demonstrada por aqueles estrangeiros, muitos dos quais até há bem pouco tempo seus servidores. Pinto introduz na narrativa um dos capitães de Toungoo expressando o que verdadeiramente pensava daqueles estrangeiros metediços, seus directos concorrentes e com salários bem mais chorudos. Gritou ele para Caeiro: “Despeja já o caminho, porque não é lícito que gente tão má como vós outros trilhe a terra que pode dar fruto; e perdoe Deus a quem meteu na cabeça a El-Rei que podíeis prestar para alguma coisa, rapai as barbas, para que não se engane a gente convosco, e servir-nos-eis de mulheres pelo nosso dinheiro”. Encorajados, outros deram largas ao seu xenofobismo tratando de expulsar do local os forasteiros mais à mão, entre os quais constava o nosso Mendes Pinto que nunca se sentiu tão desconfortável por ser português como naquela ocasião.

Joaquim Magalhães de Castro

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