POR TERRAS DE ARRACÃO – 3

POR TERRAS DE ARRACÃO – 3

De Souza Pharmacy, goeses na Birmânia

Regressemos ao ponto zero da cidade, à rua Maha Bandula, oeste do pagode de Sule, para tentar reconstruir mentalmente a fachada de um próspero edifício em cujo rés-do-chão funcionou outrora a “De Souza Pharmacy”, como o comprova um cartão postal de 1961 que descubro num velho alfarrabista. Em 1912, o Rangoon Timesidentificava-a deste modo: “E.M, de Souza & Co. / 271 Dalhousie Street and Maung Tawley Street”. Ora, a Dalhousie Street é a actual Maha Bandula Road; Maung Tawley Street passou a denominar-se BoSanPet Street. De postal em riste tento uma localização, mas infelizmente o pórtico do prédio há muito foi demolido, sendo este ocupado agora pela Divisão de Contas dos Correios e Telecomunicações de Myanmar. Está irreconhecível! Deveras curiosa, a mensagem associada ao letreiro da farmácia: “Pode confiar em De Souza. Os seus medicamentos são genuínos”. De outra forma não podia ser, pois médico certificado, dentista, para ser preciso, era o seu proprietário. A clínica do luso-birmanês constava, na época, como das maiores e mais reputadas de Rangum. Não obstante, ver-se-ia, em 1963, o famoso De Souza, obrigado a deixar o País e a encerrar para sempre as portas do seu concorrido estabelecimento.

Rangum teve já significativa comunidade goesa, o que explica a existência, ainda hoje, de inúmeros apelidos portugueses na lista telefónica local. No livro “Songs of the Survivors”, Yvonne Vaz Ezdani, ex-professora residente na Birmânia até ao início da década de 1980, reúne 24 depoimentos de goeses, nascidos e crescidos no País quando este era ocupado pelos britânicos. São testemunhos dos momentos dramáticos vividos após a invasão japonesa durante a Segunda Guerra Mundial e do subsequente impacto na vida de todos. Habitualmente serenos e confortáveis, “os goeses mergulharam no caos e no medo”. Muitos regressaram ao Nordeste da Índia, via Chatigão ou Manipur, atravessando selvas, montanhas e caudalosos rios, mas houve quem decidisse ficar. Os anos de ocupação contrastariam drasticamente com o invejável estilo de vida levado pelos goeses nesse “país encantador de rios amplos, campos verdes de arroz, pagodas e mil colinas”. Desde então, a maioria acabaria por imigrar para outras partes do globo, com particular incidência para a Austrália e o Canadá, e, nalguns casos, para Goa e outras partes da Índia.

Prosseguindo a minha revisita ao centro de Yangon constato a necessidade de obras no Government Press Building, datado de 1912, manifestando, em sentido oposto, inteira solidez a sede do Myanmar Times, defronte à Catedral de Santa Maria, uma espécie de Notre Dame asiática, local de culto mor da comunidade católica, também dedicada a Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Logo à entrada, um marco de cimento e fibra acrílica assinala os 500 anos da Igreja Católica (1511-2011), aqui, ao contrário do que aconteceu recentemente na Tailândia, correctamente assinalada.

A introdução do Catolicismo deu-se logo após a conquista de Malaca com o envio dos primeiros missionários ao então reino do Pegu. O evento contou com a presença do legado papal, cardeal D. Oswald Gracias. De origem portuguesa, como o judaico apelido indica, Gracias foi nomeado arcebispo de Bombaim (nesse cargo precederia D. Ivan Dias) a 14 de Outubro de 2006 e elevado a cardeal um ano depois, tendo posteriormente sido eleito presidente da Conferência dos Bispos Católicos da Índia (2010) e Presidente da Federação das Conferências Episcopais da Ásia (de 2010 a 2019). D. Oswald Gracias, apontado como possível candidato a suceder o Papa Bento XVI em 2013, é hoje um dos conselheiros do Papa Francisco, ajudando-o a governar a Igreja Católica e a reformar a sua administração central. Em jeito de curiosidade, acrescente-se que D. Oswald Gracias foi ordenado padre em 1970 pelo então arcebispo de Bombaim, e provavelmente tio seu, D. Valerian Gracias, nascido em Karachi, de pai e mãe goeses.

Ainda a respeito do jubileu, recordo o entusiasmo demonstrado pelo antigo arcebispo de Mandalay, o já falecido bayingyi D. Alphonse U Than Aung, meu anfitrião e a quem devo o contacto com a vasta comunidade luso-descendente estabelecida no Norte de Myanmar.

Uma vez no interior do imponente e gótico templo, com o seu exterior coberto de tijolo vermelho e o interior inteiramente ladrilhado e com ricos vitrais, busco de imediato, na lápide de mármore colada à entrada, apelidos lusitanos. Entre os benfeitores do período do vicariato do bispo D. Alexander Cardot (1893-1925), destaco um “Dr. and Mrs. E.M de Souza” (seguramente o nosso homem da De Souza Pharmacy), um “Mr. V.J. Mariano”, um “Mr. Benjamin”, uma “Mrs Augustine” e uma “Mrs Pereira”. Mais acima, num quadro de honra vidrado, numa longa lista com centenas de benfeitores descubro uma “Mrs. Elisabeth Ann Montero”; uma “Fatima Mary”, um “Fernandez”, uma “Florence Daniel”, um “Dennis Penna”, uns “Mr. Stephen & Mrs Dorathy Gabriel”, uns “Jose Luis & Caroline Aye Phyu Win”, uma “Dominica D’Souza”, uns “Mr. Sylvester Anthony D’Rosario & Mrs. Htay Htay D’Rosário”, um “Mr. Sinesio Dias”, um “Roland Aquino”, um “Roddy D’Castro”, uma “Rosalina”, uma “Rosalia Minus”, uma “Lourdes Maria Jacinta”, um “Noel D’Cruz”, um “Philippe Pereira” e uma “Da Rosa”. O périplo pelo catedral, àquela hora sem vivalma, revela ainda que os oratórios do Menino Jesus de Praga e da Nossa Senhora de Vailankanni devem-se à família “Radley & Glynis Pereira” em memória de uns tais “James and Janet (nee D’Cruz) Mouat”, isto junto à gruta da Nossa Senhora da Imaculada Conceição e a uma pedra evocativa benzida pelo Papa Francisco aquando da sua visita em 2017.

Joaquim Magalhães de Castro

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