Pinceladas Nipónicas – 5

Banda desenhada e homens-gabardina

Num permanente comutar de um lado para o outro, o japonês é o protótipo do passageiro aborrecido, pronto a consumir tudo o que o ajude a matar o tempo, sendo por isso o alvo ideal de todas essas revistas de cordel que proliferam no mercado como cogumelos em terreno húmido, em todos os tamanhos e feitios. As revistas de banda desenhada (em japonês, “manga”) são um desses negócios lucrativos. As mais populares saem semanalmente e contêm várias centenas de páginas, o que faz delas autênticas Páginas Amarelas impressas em papel de jornal de várias cores.

Os ingredientes são os habituais: violência, sexo, humor e desporto. Em todos os números surgem, fatais como o destino, as habituais historietas de basebol, o desporto-rei; de sumo, o desporto nacional; e de golfe, a paixão dos homens assalariados. Contudo, o que mais chama a atenção é a presença de um erotismo pornográfico bastante evidenciado, que não raras vezes roça o doentio. E aqui o “complexo de Lolita” – que aflige uma parte da população masculina do Japão – transparece nitidamente. Mas, para que não os acusem de imorais, os censores puritanos encarregam-se de ocultar as partes íntimas com um pequeno quadrado negro ou mesmo apagando a imagem, pois há uma lei no Japão que proíbe a exibição de pêlos púbicos em público. É o que se chama de pudor púbico.

Banda desenhada vende-se – citando a expressão de um locutor da J-Wave, estação de rádio FM com serviço internacional – «como bolinhos quentes». Basta olhar para as cabeças debruçadas sobre esses calhamaços repletos de figuras e com poucas palavras para chegar a tal conclusão.

Revistas de manga podem ser adquiridas, ainda com o cheiro a tinta, nas bancas ou nos minimercados abertos 24 horas, junto às massas instantâneas Noodle Cup, barras de Sneakers ou pacotes de saquê Tetra Pak. Podem obter-se ainda, gratuitamente, em segunda, terceira ou quarta mão, nos caixotes do lixo, bancos de jardins públicos ou nos porta-bagagens dos comboios, que funcionam como uma biblioteca itinerante. Por exemplo, um indivíduo lê uma dessas revistas, folheando-a a uma velocidade alucinante e, uma vez acabada, coloca-a num assento vago onde será apanhada por um outro passageiro que lhe dará uma vista de olhos e a levará consigo quando sair, na estação seguinte. Existem depois duas possibilidades: ou leva a revista para casa ou abandona-a no cesto de uma das milhentas bicicletas estacionadas junto à estação ou no interior de outras tantas cabines telefónicas existentes por ali.

 

COMBOIOS SOBRELOTADOS

Nos compartimentos dos comboios das diversas linhas da “Japan Railways” era este o cenário de todos os dias. A viagem mais parecia uma batalha, com os sobreviventes a irem ficando, como destroços, perdidos pelas enormes e gélidas gares. Eram sobretudo noites de gabardinas e pastas debaixo dos braços e vivas à bebedeira, que aos fins-de-semana, então, eram quase uma obrigação. Questão de esquecer as mágoas, recarregar baterias, socializar. Abriam-se então as emoções, perdia-se a face, tombavam as máscaras, esqueciam-se as vénias e a compostura ideal.

Para matar o tempo folheavam-se as tais bíblicas bandas desenhadas, impressas em papel de jornal colorido, liam-se livros de bolso ou folheavam-se páginas de jornais que pareciam só falar de sumo e basebol, tudo isto bem condimentado com picantes artigos e anúncios sobre o sexo vendido com fotos bem elucidativas.

Lembro-me de ver um parzinho sentado a meu lado muito abraçado, numa ousada atitude impossível de presenciar há uns anos atrás. Esgotada, uma empregada de escritório, deixava tombar a cabeça sobre os joelhos e o seu longo cabelo sedoso quase varria o chão. Ao lado, um não menos arrasado “salaryman” – que prefiro chamar “homem-gabardina” – tinha a cabeça pousada no ombro da rapariga. Junto a eles, um outro homem, que tivera o cuidado de se descalçar primeiro, dormia deitado ao comprido ocupando vários lugares, sem que houvesse qualquer protesto apesar de o compartimento ir à pinha.

Um roqueiro com o cabelo pintado de louro, auscultadores do “walkman” nos ouvidos, simulava solos de guitarra, alheio a tudo e todos. O “walkman” era a arma favorita dos jovens japoneses para se defenderem das multidões comprimidas.

Lá fora, néones anunciavam hotéis, “love” hotéis e esses templos do jogo, os “pachinkos”, baptizados com nomes convincentes do tipo Mónaco, Las Vegas, Fortune, Luck. Um cartaz gigantesco publicitava HIPS, o novo grito das bebidas de baixo teor alcoólico, ideais para as raparigas.

Histórias de homens-gabardina nos compartimentos dos comboios eram mais que muitas. Podia relatar aquela do homem-gabardina que me convidou a ir a um karaoke, só porque não queria voltar a casa no lamentável estado de embriaguez em que se encontrava. Ou, então, aquela em que um homem-gabardina de meia-idade, sóbrio, estendeu no chão com um murro o colega de profissão, totalmente ébrio, que importunava uma rapariga. E isto tudo sem que os outros passageiros perdessem a cara-de-pau tão característica. Poderia ainda falar de outros homens-gabardina, que entravam a cambalear, passavam a viagem em busca do equilíbrio deixado algures num bar da cidade, e saíam aos tropeções para irem vomitar na plataforma, quando não o faziam no interior da carruagem. Ou ainda dos que ficavam adormecidos e tinham de ser despertados pelos guardas da gare. Poderia falar de tudo isso, mas prefiro falar da “noite em que homem-gabardina chorou”.

 

UM ACENO EM IKEBUKURO

Tudo começou após o encontro fortuito com um cozinheiro francês na estação de Ikebukuro. A conversa que se seguiu foi acompanhada por gestos exuberantes e exclamações próprias de quem viveu exposto aos ares do Mediterrâneo. Os japoneses, àquela hora já bem fora das filas, pareciam imunes ao entusiasmo que o cozinheiro espalhava à sua volta, feliz da vida por ter deparado com um outro latino. Já no interior da carruagem, o ânimo manteve-se, efervescente para o francês, em banho-maria para os restantes passageiros. Mas talvez um pouco mais quente para um dos homens-gabardina, gravata desapertada, que veio até junto de nós e sorriu, sem jeito. Estava embriagado. Tanto melhor. Muitas das vezes e só nesse estado que o japonês é capaz de dizer o que lhe vai na alma. O “chef” francês, que devia sair na próxima estação e dava provas do desgaste que, inevitavelmente, se manifesta quando se vive muito tempo em metrópoles como Tóquio, reagiu à aproximação do japonês da pior maneira. Ao mesmo tempo que me entregava o cartão do restaurante onde trabalhava – Tango California (estranho nome para restaurante francês!) – deixou no ar um injusto «comme ils sont cons», e saiu.

Algumas estações depois, encontrei um lugar vago e aproveitei para folhear a revista que comprara. O homem-gabardina, encontrado o pretexto, ganhou o resto da coragem e disse, apontando para um anúncio sobre música estampado nas páginas da revista: «I like Blues…». Quebrado o gelo, desengatilhou tudo o que sentia e que talvez há muito tempo quisesse dizer. Bateu sobretudo na tecla da fobia dos japoneses em relação aos estrangeiros. «Todos eles», dizia, apontando para os passageiros em volta, «estão cheios de preconceitos em relação a vocês, estrangeiros». E fê-lo em voz alta, para que todos ouvissem. Mas ninguém se descoseu. Faziam de conta que não era nada com eles. A certa altura, o homem-gabardina não pôde mais. Desatou a chorar e pôs o braço em volta do meu pescoço, dizendo, como quem queria redimir toda a nação: «Mas eu gosto de estrangeiros».

A proximidade da estação onde devia sair veio desdramatizar a situação. Num repente, como se as lágrimas lhe tivessem devolvido a sobriedade, o homem recompôs-se, arranjou a gravata, pegou na pasta e levantou-se. Deu-me depois um aperto de mão e pediu desculpa por me ter importunado. Já na plataforma, e após o comboio ter iniciado a sua marcha, começou a correr, e, em mais uma atitude inesperada, pôs-se a acenar e a atirar beijos!

«Estes japoneses estão loucos!», diria o Astérix se fosse a Tóquio. E, de facto, quando voltei a olhar as pessoas à minha volta deparei com as mesmas caras de pau. Imutáveis. Apenas a rapariga sentada à minha frente sorriu, quando o nosso olhar se cruzou. Chegada ao seu destino, fez-me a devida vénia e saiu. Com um sorriso ao canto dos lábios.

Joaquim Magalhães de Castro

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