Uma Páscoa tropical
Entre as comunidades de luso-descendentes da Ilha das Flores, na Indonésia, a Semana Santa celebra-se a três tempos. Ei-los:
QUARTA-FEIRA TREWA
No interior da capela, mulheres ajoelhadas acendem velas atrás de velas. Nas filas posteriores, mais mulheres, algumas crianças e homens, rezam com compenetrada devoção. É a tribo de Jentera que encerra a semana de orações na capela dedicada a Nossa Senhora do Rosário (Tuan Ma), em Larantuca, capital espiritual das Flores. Uma das Mama Mudji (mães da música) enuncia o cântico, e logo as outras o continuam. Empunham, todas elas, livrinhos com preces em Português corrompido. Textos que ao longo de gerações foram copiados à mão. Rezam e cantam – as senhoras desta irmandade – Pais-nossos, Aves-marias e Salve-rainhas em Português, mas nenhuma delas entende o que diz.
Degustam agora, os devotos, pão-de-ló, bolo-mármore e outros doces que nos são familiares. Um luxo final. É que ainda antes da noite há celebração na capela Trewa (Treva). Há que relembrar a Quarta-feira de Cinzas, início de reflexão e contenção material.
Ao longo do dia são limpas e pintadas de novo as campas no cemitério. A companhia aos entes desaparecidos é feita num ambiente recolhido, mas sem angústias. Mal se aproxima a noite, alegram-se com velas as sepulturas.
Na catedral a cerimónia da Lamentação de Jeremias é praticamente toda cantada. Os coristas, membros da Confraria, envergam opas e realçam as medalhas douradas que trazem à volta do pescoço amarradas a um cordão azul. Em determinados momentos da missa, dois deles poêm-se à frente do altar e fazem soar as “matrakas” que trazem nas mãos. Também a sonoridade no momento da consagração não provém da habitual sineta, antes sim de um gongo chinês. Especificidade local, fruto de intercâmbios de centúrias.
QUINTA-FEIRA TIKU
Ao longo das apertadas e paralelas ruas da povoação são colocadas as estacas de bambu que irão suportar as velas, de produção caseira, no cortejo de sexta-feira à noite, ponto alto das cerimónias pascais. À equipa encarregue desta tarefa, denominada Tiku, é servida uma refeição em casa do mordomo.
Em oleados verdes sentam-se uns sessenta homens, entre os quais alguns muçulmanos. Em Larantuca as festas preparam-se e celebram-se em espírito comunitário. Até porque há famílias que reúnem gente de ambos os credos. No que à religião diz respeito – e não só – Flores é um exemplo de convivência pacífica.
Na cozinha e quintal da casa da família Fernandes – que este ano teve a honra da distinção – as mulheres preparam comida e bebida. Da receita destacamos, pela sua originalidade, a carne de cão e o “arak” local, uma aguardente de palma de forte teor alcoólico.
Quinta-feira é dia de Tuan Ma. A estátua da Virgem – oculta todo o ano – é cuidadosamente lavada por membros da “Confreria”, numa operação sigilosa que demora várias horas. Aberta a capela, honra reservada aos descendentes dos Godinhos, rajás de Larantuca, inicia-se o ritual do “beija a Senhora”. Vestidos de preto, de joelhos no tapete vermelho que conduz à estátua – agora com a cara e uma das mãos reveladas (o resto do corpo continua escondido sob um manto azul com laivos dourados) – os mordomos da capela, duas famílias chinesas de Jacarta, prostram-se, visivelmente emocionados, aos pés de Tuan Ma. Seguem-se os membros da “Confreria”. Só depois as restantes pessoas, numa operação que se prolongará ao longo do dia e durante toda a noite.
Apela-se ao silêncio e fecha-se a estrada principal. A partir de hoje ninguém está autorizado a trabalhar.
SEXTA-FEIRA SANTA
Estamos dentro de um barco, como se estivéssemos preparados para uma partida de alta competição. Parece que andamos, mas não andamos. A corrente não deixa. Manha das águas do Estreito de Gonçalo, que separa Flores das ilhas de Solor e Adonara, e cuja perigosidade era mencionada pelos cronistas de Seiscentos.
Finalmente, vemos sair, da capela Tua Meninu, na margem direita, a estátua do menino Jesus, protagonista de uma procissão marítima com séculos, na tradição das de Viana do Castelo ou dos Açores. A estatueta é cuidadosamente depositada numa pequena barca com coberta. Empurram-na, com longas canas de bambu, dois homens. Três ou quatro canoas abrem caminho, logo seguidas pelos pescadores de baleia de Lamalera, na ilha de Lembata. São eles, apesar de muçulmanos, os tradicionais protectores do “Meninu”. Milhares de crentes aglomeram-se na margem ao longo do percurso que não totaliza um quilómetro.
Depositado o divino em capela apropriada, prepara-se nova procissão. Desta feita, para levar Tuan Ma à catedral. A abrir o desfile temos o porta-estandarte, depois o tamborileiro que rufa um bombo de caixilho (de origem portuguesa), logo seguido de dois “matrakeros”. Estão ali, nas mãos das crianças, todos os símbolos pascais: a mão de Judas, as laranjas, as uvas, a escada, os espinhos, a esponja com fel… Após a procissão segue-se uma eucaristia mais prolongada, mas sempre marcada por cânticos. A entrada de quatro “nikodemus” (indivíduos encapuçados à semelhança dos da Semana Santa, em Sevilha), que aguardam depois junto ao andor do Cristo morto, é um dos momentos mais dramáticos da noite. As carpideiras, mulheres de Jerusalém, camufladas por um pano negro, murmuram ladainhas sentadas na nave esquerda da igreja. Entra, quase no final da cerimónia, Verónica, que do alto de um banco, abre lentamente um pergaminho com o rosto ensanguentado de Cristo enquanto canta, em Latim, “Ovos Omnes” e “Eus”.
A saída para a procissão é faseada. Primeiro, os membros da “Confreria” e os “Ajudas Deo”, munidos de estandartes e ornamentos. Seguem-se os “nikodemus”, a Tuan Ma, a Verónica, as mulheres de Jerusalém e os Pagadores de Promessas, empunhando velas acesas. Só depois o grosso dos devotos.
A procissão prolonga-se até as duas da manhã com longas paragens nas ermidas da via-sacra onde são repetidos os rituais e os cânticos. Só o rufar do tambor e o ruído das “matrakas” interrompem a litania. Velas são acesas pelas participantes à medida que a marcha progride. À entrada de muitas das casas há altares com a imagem de Cristo, sempre bem alumiados.
Setenta por cento da população de Larantuca marca presença. Se a ela juntarmos os peregrinos, podem ser contabilizadas mais de trinta mil almas. Compreende-se algum do aparato policial. Em situações destas, paira obrigatoriamente o espectro de um ataque terrorista. A estreita colaboração da comunidade islâmica local, porém, traz alguma tranquilidade. Precisamente, um cordão humano de segurança inteiramente constituído por muçulmanos delimita a entrada da catedral para onde conflui um não mais acabar de gente. A testemunhar uma fé que só pode vir dos confins dos tempos.
Joaquim Magalhães de Castro