Excentricidades, segurança e banhos quentes
Apesar do seu elevado grau tecnológico, o Japão é ainda um dos menos conhecidos países do dito mundo desenvolvido, pois vê-se rodeado – a par do espectro imperial na Segunda Guerra Mundial e do efeito devastador de duas bombas atómicas – de um sem número de ideias feitas e alguns preconceitos, sobretudo de teor económico-financeiro.
Noventa por cento dos estrangeiros que fui conhecendo por essa Ásia fora, no decorrer das conversas em que cada um desenrolava o rosário das viagens realizadas ou por realizar, diziam todos o mesmo. «Visitar o Japão? Estás louco ou quê? Não, é claro que não. O Japão é muito caro». Noventa e nove por cento dos restantes dez por cento, ou seja, aqueles que se arriscavam a visitar esse país, faziam-no com a mera intenção de aí encontrar trabalho, remetendo assim a terra do tamagotchi para um mero posto de recolha de «umas massas para voltar a viajar». Assim sendo, restavam apenas uns quantos que decidiam mergulhar no Japão, porque se sentiam fascinados pela sua história e cultura, estivesse ela representada na exótica simplicidade da comida, na excentricidade do seu povo ou no som incorporado e doce do sakuachi.
A riqueza gerada no Japão é uma verdadeira faca de dois gumes. Se, por um lado, dá aos nipónicos a possibilidade de viajar para fora do País, permitindo a muitos o luxo de passar fins-de-semana de compras em Hong Kong ou de lazer no Havai, por outro, leva a que no resto do mundo se vá cimentando a ideia feita de que todos os japoneses nadam em rios de dinheiro, que todos eles são uma presa fácil para quem lhes queira impingir seja o que for. Durante as diversas estadias naquele país conheci professores de Inglês (na sua maioria aventureiros de origem anglo-saxónica, sem qualquer formação académica) que facturavam cinco ou seis vezes mais do que jovens nipónicos acabadinhos de sair da universidade.
IDEIAS FEITAS
A segurança é outra das ideias feitas que cunham o Japão com o estigma de país certinho, de nação fotocópia. «Aqui, sei que o meu filho pode crescer em segurança». Assim falava a minha amiga ceramista, Marta Carvalho, residente no Japão há mais de uma dúzia de anos e que não se cansava de me dizer que nesse país sabia que o seu trabalho era respeitado. De facto, anos-luz separavam a aplicação efectiva dos conceitos da honra e palavra dada no Japão, da incerteza no futuro e esperteza saloia tão características do nosso país. Mas Marta tinha e não tinha razão. É certo que existia segurança no Japão, mas era uma segurança estanque, uma segurança de balão prestes a rebentar, de resto bem expressa nos trágicos episódios que tinham vindo a abalar a sociedade japonesa nesses últimos anos. Desde o atentado no metro de Tóquio com gás sarin ao caso de Kobe – no qual uma criança decapitou um colega, colocando depois a sua cabeça à entrada da escola onde ambos estudavam – os japoneses viviam sob o signo da fobia aos atentados colectivos e crimes de foro comum. Fenómenos – recorde-se – bastante raros na sociedade nipónica até há ainda bem pouco tempo. E era uma fobia que se vinha juntar a outra, não menos presente: a fobia dos terramotos. Todos os dias a terra treme no Japão. A frequência desse fenómeno, a permanente expectativa de que «agora é que é o esperado terramoto devastador», surge como um dos maiores factores de stresse para a população.
Ao longo da sua história, o Japão foi sempre um país de extremos e contrastes. Fortemente industrializado, apesar do desastroso epílogo da Segunda Guerra Mundial ter deixado a economia de rastos, o gigante asiático soube manter vivas as suas tradições mais genuínas. Hoje, a mais arrojada e inovadora arquitectura coexiste em perfeita harmonia com templos ancestrais e o pouco do casario tradicional que escapou às bombas aliadas é preservado com extremo cuidado. Diga-se o que se disser, os japoneses são os campeões incontestáveis do bom gosto, o anti-kitsch personificado.
No metropolitano, por entre os milhares de comutadores de pasta na mão e olhar no relógio, senhoras vestidas de quimono perdem-se em intermináveis vénias, no cumprimento de mais uma das milhentas cortesias sociais nipónicas, totalmente alheias ao frenesim à sua volta. Nos passeios públicos, junto a artérias congestionadas de veículos, monges budistas itinerantes, na mais pura tradição medieval, aguardam, imóveis, o possível donativo do transeunte anónimo. Também na existência rotineira do dia-a-dia se manifestam os extremos desse país que nunca me deixou de surpreender. Se, por um lado, em Tóquio, por exemplo, numa só noite de extravagâncias se pode literalmente esvaziar o mealheiro com as poupanças de um mês, não é menos verdade que é possível passar aí uma temporada sem ter de abrir exageradamente o cordão à bolsa. Se, por um lado, as linhas futurísticas de cidades como Tóquio e Osaca nos fazem sentir bem dentro do século XXI, os templos de Quioto e de Nara relegam-nos para um passado nunca ausente e com segura continuidade no provir.
DO SENTO AO RYOKAN
Estradas congestionadas e superpovoadas cidades, marcadas por autênticas florestas de fios eléctricos e telefónicos cruzando-as pelo ar, contrastam com a tranquilidade e beleza das reservas naturais de Hokkaido ou dos Alpes japoneses, na parte central de Honshu, locais escassamente habitados e raramente visitados por estrangeiros. Quem poderá alguma vez esquecer o cenário multicor das ameixeiras em flor, ou o festival de cores que é o Outono bem retratado nas colinas arborizadas de todo o País? Quem poderá ignorar um povo que, por essa altura do ano, cumpre o ritual de fazer piqueniques sob as cerejeiras floridas na esperança de ser bafejado pelo seu pólen, ou que sai para o campo, de máquina a tiracolo, para registar para a posteridade esse momento único? Quem poderá ignorar o prazer de mergulhar num sento (banho de água termal), de pernoitar num ryokan (pensão tradicional) ou degustar os maravilhosos pratos da cozinha nipónica?
É claro que se pode acusar o Japão de ser devorador de florestas tropicais, predador dos oceanos. Considerar arcaico o seu sistema educativo, a sociedade repressiva, os seus políticos corruptos – quantos deles a soldo da toda-poderosa yakuza – e o seu povo xenófobo e insular. Mas em que outro país do mundo deparamos nós com exemplar asseio e papel higiénico em todas as casas de banho públicas? Em que outro país, tudo o que encontramos – montra de restaurante ou simples livro – obedece às regras do bom gosto e sentido prático? Em que outro país do mundo há semelhante respeito pela propriedade colectiva, pelo espaço e privacidade do parceiro e eficiência nos serviços públicos?
Uma visita ao “País do Sol Nascente” deve, sobretudo, ser encarada como uma experiência única. Aprecie-se ou não, o Japão e as suas especificidades dificilmente podem ser ignoradas.
Receptáculos do que engendrou e engendra a cultura ocidental, os japoneses têm um modo peculiar de extravasar uma excentricidade muito própria, característica que os distingue dos restantes povos orientais. As bandas desenhadas locais, as ditas mangas, são um bom exemplo dessa excentricidade.
O conteúdo das histórias desses livros de consumo fácil (lidos pela população masculina, sobretudo estudantil, embora exista um mercado paralelo, mais reduzido, destinado ao público feminino), a julgar pelas imagens – já que as palavras são um enigma para quem desconheça os dois alfabetos japoneses – é banal e o desenho muito estereotipado. Lembram-se dos olhos grandes e da boca aberta da Heidi, Yo-la-re-i-o!, e das lágrimas grossas a escorrer pela face do Marco enquanto corria dos Apeninos aos Andes, nas séries televisivas de animação? Pois bem, os desenhos, na maioria dos casos, são muito parecidos. Trata-se de uma fórmula impingida aos japoneses (e a todo o mundo) em doses industriais, uma espécie de versão nipónica do império Disney.
Mas sobre esse assunto falaremos, mais em detalhe, nas próximas, e últimas, Pinceladas Nipónicas.
Joaquim Magalhães de Castro