Rockbilly e Samba no parque de Yoyogi
No princípio de uma tarde de Domingo, na estação de Harajuku, em Tóquio, estranhei a predominância de jovens agrupados em acalorada conversa. Apesar do seu aspecto menos ortodoxo, mantinham-se ordenadamente afastados das linhas amarelas que delimitam a plataforma dos carris, parecendo obedecer à voz metalizada do altifalante que anunciava a chegada das composições, intervalada com a musiqueta de pré-aviso. A cada chegada e partida, acumulavam-se mais e mais jovens que logo se precipitavam para a saída principal. Também aí, apesar da relativa facilidade em evitar os obliteradores mecânicos de bilhetes, a malta cumpria com o seu dever cívico de utente.
Harajuku é uma das estações mais coloridas da capital nipónica, num contraste absoluto com o cinzentismo da imensa massa humana assalariada que habitualmente povoa as restantes estações. Mas aquele frenesim de fim-de-semana tinha uma simples explicação: mesmo ao lado da via-férrea estende-se a mancha verde de Yoyogi, um dos mais extensos e aprazíveis parques da capital nipónica.
Logo à saída, corri o risco de ser abordado por uma das seitas religiosas que pululavam as imediações. Os seus seguidores, de fé em riste, tentavam convencer os transeuntes a deixar «esta vida de devassidão e pecado» com palavras afáveis, entregando panfletos, ou, então, reunindo-se em círculo, repetindo intermináveis ladainhas. Mesmo ao lado, aglomeravam-se adolescentes que depois seguiam para festas privadas. Assemelhavam-se a algumas das personagens do Blade Runner ou a fãs acabadinhos de sair de um dos concertos dos New York Dolls ou dos The Cure.
Num pequeno mercado de tendinhas exibia-se artesanato e diversa parafernália do tipo “é giro porque está na moda” ou “é fixe porque é de um país do terceiro mundo”, tribal ou outra que tal. A quem o desejasse, pintavam-lhe a t-shirt e faziam-lhe tatuagens em qualquer recanto do corpinho. Ao capricho do freguês e tudo muito rápido.
Depois de ter avançado alguns metros, vi-me face a face com os primeiros espécimes daquele verdadeiro circo humano. Afinal, a razão de ser da minha deslocação – e a de muitos outros passeantes – a essa zona densamente arborizada, mesmo no centro de Tóquio. Harajuku era sinónimo de excentricidade e, além-fronteiras, um local de que se fala frequentemente.
ELVIS E O CAPUCHINHO VERMELHO
Valia de tudo em Harajuku. Centenas de adolescentes aparelhavam-se com o mais excêntrico vestuário e iam para a avenida – fechada propositadamente ao trânsito da uma às seis da tarde – com o óbvio intuito de chamar a atenção. Em catadupa, e ao longo de quase um quilómetro, seguia-se uma parada carnavalesca, que nos alertava para as mil e uma diferentes formas de dar nas vistas.
Os primeiros metros da estrada, porém, eram ocupados pelos vendedores ambulantes e respectivas roulotes, prontos a servir cachorros quentes, refrigerantes e as tradicionais massas soba e udon.
Sentados nos passeios públicos, guitarra ao colo, alguns jovens interpretavam temas que soavam contestatários. Uma gordinha de totós e óculos de aros grossos, pasta escolar aos ombros, enfiada num vestido vermelho – misto de Capuchinho Vermelho e enfermeira da Cruz Vermelha com a mesma cor atrás enunciada – passeava de trás para a frente e dirigia-se, sem qualquer razão aparente, a quem lhe aparecesse pela frente, e sempre com o ar mais sério deste mundo.
Encostada a um muro, outra rapariga, de cabeleira postiça de um vermelho berrante, apontava para um cartaz com a imagem de um dos seus ídolos musicais, e, quando lhe apontei a objectiva da minha máquina fotográfica, posou com ar desafiador.
Protagonista por excelência, a tribo dos rockbillys, veneradores de Elvis Presley (são aos milhares no Japão), alheada de tudo e de todos, ocupava umas largas dezenas de metros de estrada que mais ninguém ousava disputar, a não ser, claro, as imponentes motos estacionados nas bermas. Eles, gel no cabelo, chaveiro a tilintar nos cintos de cabedal que seguravam as jeans coçadas, faziam acrobacias atrevidas ao som de poderosos ghetto blasters que vomitavam música para o arvoredo. Enquanto dançavam não esboçavam um sorriso, mostrando-se até agressivos, sobretudo se alguém lhes tirava uma foto. Elas, de franja, quais namoradinhas anos 50, não dançavam. Limitavam-se a observar os seus machos, sentadas no chão junto aos gravadores, com os vestidos de chita floridos espalhados pelo asfalto negro.
No que respeita a decibéis, poucos podiam competir com as ensurdecedoras bandas de rock alinhadas ao longo de umas boas centenas de metros. Do glamour ao heavy metal, do grunge ao punk, do psicadélico ao hip hop, havia para todos os gostos.
Canteiros de flores dividiam a estrada a meio, permitindo assim que se pudesse descer por um dos lados e subir pelo outro. Pairava no ar uma verdadeira cacofonia de acordes, solos de guitarra, rufar de baquetas e berros de cantores, tal era a proximidade entre uns e outros intérpretes, que, apesar do seu aspecto aparentemente improvisado, iam para ali muito bem preparados, equipados com material de primeiríssima qualidade. Quem dera a muitas bandas de garagem portuguesas da época possuírem uma terça parte da aparelhagem que as congéneres de Harajuku tinham à sua disposição.
A carrinha que transportava o material servia muitas das vezes de bastidores, pois muitos dos músicos davam-se ao luxo de actuar num palco com estrado, envergando trajes adequados, recorrendo a todos os efeitos electrónicos e mais algum, isto para além de colocarem à disposição do público uma banca de vendas onde era possível adquirir CDs a preço promocional, com a vantagem de levar rubricado o autógrafo do artista em questão. Este era um factor primordial para as centenas de fãs, maioritariamente raparigas adolescentes, que ali se deslocavam. Doentiamente fiéis, histéricas até, concentravam-se em frente ao seu grupo favorito, Domingo após Domingo. Sabiam os temas de cor e repetiam, como autómatos, os gestos efectuados pelo líder da banda. Via-se que tinham em cima muitos Domingos de ensaio.
FAQUIRES, RAPPERS E PATINADORES EM LINHA
Ultrapassada esta ruidosa trupe, seguiam-se os vários grupos musicais de cariz religioso, bem mais modestos no que respeita a indumentária e parafernália electrónica. A estes bastava-lhes a guitarra de caixa, o órgão portátil e a pandeireta para interpretar os seus temas originais, empunhando cartazes com o refrão escrito num convite a todos os que desejassem acompanhá-los. Apesar da devoção demonstrada (havia quem exibisse cruzes de madeira), pareciam incapazes de congregar turbas de adolescentes, como as que se acotovelavam em frente aos grupos de rock e afins.
Nesta amálgama havia ainda espaço para os breakdancers, patinadores em linha, faquires, imitadores, palhaços, oradores das causas perdidas a discursar para ninguém em púlpitos improvisados, praticantes de aeróbica, contorcionistas, malabaristas, rappers, actores de teatro butho e o que mais quiserem imaginar. Todos eles aproveitavam para praticar ou, muito simplesmente, extravasar o que lhes ia no íntimo, aparentemente alheios aos mirones que passeavam por ali. No final da avenida, sentado em frente a uma bateria montada junto a uma carrinha de bagageira aberta, um candidato a músico, de auscultadores na cabeça, insistia estoicamente nos compassos de 4 por 8 e 16 por 32. Não estava ali para se exibir, mas para ensaiar, como tantos outros, que no interior do parque, ao longo da avenida, junto aos muros dos anexos do complexo desportivo e sob os viadutos para peões, passeavam as escalas de cima para baixo e de baixo para cima, nos seus saxofones, trompetes e trombones.
No Japão, ensaiar em casa é um assunto bastante problemático que nem sequer os pianistas se atrevem a abordar, com receio das represálias dos vizinhos. E como as salas de ensaio são bastante caras, restam como alternativa os parques e os jardins públicos.
Mas não foram as contínuas repetições de escalas cromáticas, ou não, que me despertaram a atenção, antes um rufar de tambores com uma sonoridade bastante familiar. Familiar a sonoridade, familiar o amarelo e azul das camisolas com os nomes de algumas das mais conhecidas estrelas do escrete canarinho envergadas por um grupo de três dezenas de rapazes e raparigas munidos de caixas, pratos, cuícas e timbalões. Faziam parte de uma escola de samba, estavam em Domingo de ensaio e afirmavam-se como os maiores entusiastas da música e da cultura do Brasil, apesar de nunca lá terem posto os pés nem saberem uma palavra que fosse de Português.
Deixei-me ficar no parque até escurecer, até depois da reabertura ao tráfego da avenida de Harajuku, escutando-os interpretar divinalmente temas imortais como o Manhã de Carnaval e o Você Abusou, e só uma questão me apoquentou: como era possível que estes universitários ignorassem que os versos que cantavam pertencem à mesma língua dos nambans que, em 1542, lhes revelaram o mundo ocidental que agora tanto apreciam?
Joaquim Magalhães de Castro