Sabor, figos e memórias de Churchill
Ainda não há muito tempo, um inquérito nacional revelava que era no universo rural que mais se fazia sentir o ambientalismo. Ou melhor dizendo: o povo português não gosta mesmo nada disso de lixeiras, incineradoras e cemitérios nucleares. Perante tal conclusão, seria de depreender que existe uma consciência ecológica no nosso povo bem amadurecida. Não propriamente. Quando se diz que o povo português não gosta mesmo nada disso de lixeiras, incineradoras e cemitérios nucleares, é só quando estes lhes vêm bater à porta. Por que se for à porta do outro se calhar já pode ser. Ou seja: a sensibilidade ambiental é sobretudo marcada por interesses privados ou locais.
A “flor de estufa”, neste caso, chama-se buxo. Uma espécie, que no seu porte arbóreo, quase só existe na região do Vale do Sabor. E como o projecto da construção da barragem avançou, cerca de 70 a 75 por cento da população do buxo ficou submersa. A comprovar que, infelizmente, os inquéritos podem ser muito enganadores, eis o que disse um popular, claramente a favor da construção da barragem no rio Sabor, a propósito da necessidade de salvaguardar essa espécie vegetal: «Em Foz Côa não fizeram a barragem por causa de uns riscos nas pedras, aqui não a querem fazer por causa da m…. do buxo. Isto admite-se!?» E agora perguntamos nós: que capacidade de raciocínio e discernimento terá uma pessoa que considera patrimónios da humanidade «uns riscos nas pedras» e uma «m….» de arbusto? Infelizmente, a aprovação da barragem do Sabor, não foi só o buxo a ficar submergido para todo o sempre. A lista do património irremediavelmente perdido é longa: duzentos valores de interesse etnográfico, histórico e arqueológico. Foram moinhos, colmeias, construções rurais, pontes, capelas, santuários e vários vestígios pré-históricos. Em importância destacam-se o santuário de Santo Antão da Barca e as pontes de Portela e de Remondes (datada do século XVII). Isto, para além da enorme mancha de terrenos agrícolas que deixaram de o ser. Ironicamente, um dos objectivos da barragem era reservar água, precisamente para regar os ditos terrenos.
Ainda no interior do País e a propósito de um desses apontamentos de reportagem transmitidos pelas tevês. O cenário: uma aldeola em polvorosa. Motivo da (pouca) discórdia: a substituição de algumas cruzes de granito de uma igreja românica por antenas de uma rede de operadoras de telemóvel disfarçadas de cruzes modernistas. Ou seja: um primor de atentado ao património, que assim como quem nem quer a coisa, às claras e à má fila, recebera o aval do presidente da Junta e a “bênção” do pároco local, que se escusava aos microfones dos jornalistas realçando as «mais vantagens do que desvantagens» de semelhante barbaridade. Mas o mais chocante ainda foi o ficarmos a saber que o IPPAR esteve ao corrente de todo o processo e nada fez para o travar. Realmente, a intromissão das empresas de telecomunicações na vida pública e privada dos cidadãos é tal que nem mesmo o património histórico-arquitectural do País escapa à sua veracidade.
O figo, um dos alimentos mais completos em fibra, encontra-se meio esquecido. Em prateleiras escondidas dos supermercados. Em casa das famílias portuguesas, o figo seco, que recordo da infância, foi substituído pelos flocos de cereais, o que apenas ajuda a enriquecer as grandes produtoras e cadeias alimentares, i.e., as “Nabiscos” deste mundo. No caso de Portugal, pode-se dizer que é mesmo um património bem nosso que se encontra em risco. No século XIX o figo português era considerado o melhor figo do mundo. Em 1887, por exemplo, a região algarvia produzia catorze mil toneladas de figo, cuja produção ocupava 25 mil 295 hectares de terra agrícola e milhares de postos de trabalho. Entre os maiores portos de exportação desse produto figuravam Portimão, Lagos e Faro. Desde então a produção do fruto tem vindo a diminuir drasticamente.
Do continente para as ilhas. Celia Sandys, neta de Winston Churchill, visitou em tempos a Madeira com o intuito de retratar os diversos passos das inúmeras viagens do seu avô. A senhora Sandys, que já escreveu dois livros sobre a vida do estadista, ficou hospedada, como não podia deixar de ser, na suite Churchill do hotel Reid’s, e aproveitou para visitar o recentemente inaugurado Museu Churchill, em Câmara de Lobos. E foi aí que contou um «interessante caso» que se passou com o seu avô e que ela certamente irá revelar, se não revelou ainda, no seu próximo livro. Deixemos a senhora Celia falar: «O meu avô visitou a Madeira na década de 1950 e ficou instalado no hotel Reid’s. Um dia, tendo acabado de fumar um dos seus famosos charutos atirou-o fora. Um jovem local apanhou o que estava do chão, tendo-o posteriormente vendido por um considerável valor monetário». Este episódio traduz bem as relações luso-britânicas ao longo dos tempos. Com uma única diferença. Ao contrário do jovem madeirense, que ao menos teve a esperteza de fazer render o coto do charuto, nós andamos sempre a viver de restos de ingleses e nunca tiramos proveito disso.
Joaquim Magalhães de Castro