O fruto da semente e as missões artísticas
A escolha dos suíços enviados para o Brasil como colonos obedeceu a um processo interno por parte do país transalpino. Partiram as pessoas com o maior potencial, ou seja, agricultores e criadores de gado. Estes, no entanto, iriam ter grandes dificuldades de adaptação. Há registos de uma grande mortandade nos primeiros anos da sua fixação e quando começaram a adaptar-se e a tornar rentáveis as suas terras logo transitariam para lugares mais férteis e menos doentios, embora sempre na periferia do Rio de Janeiro. Sobre essa matéria ouçamos a historiadora Maria Adelina Amorim: «Apesar do sucesso de produção, não havia modo de escoamento dos produtos. Durante muito tempo, muito tempo mesmo, o Brasil não seria a terra prometida que todos esperavam. Foi com muitas dificuldades que estas novas famílias reiniciaram as suas vidas».
Os colonos portugueses receberiam bem essa gente não a vendo como concorrente ou inimiga, antes miscigenando-se com ela, se bem que numa fase tardia. Aos suíços seguir-se-iam colonos alemães, inicialmente destinados ao povoamento da região da Baía, «zona muito mais problemática», mas que, «devido ao clima», acabariam por demandar para Nova Friburgo. A partir dali estender-se-iam até ao Rio Grande do Sul. Surgem depois, «empurrados pelas fomes», as grandes vagas imigratórias europeias compostas essencialmente por italianos; a grande força motriz do final do século XIX. «Em 1870 são os italianos e depois, já no século XX, na sequência das duas grandes guerras, todos os outros: líbios, sírios e japoneses. Tudo se processou em cadeia e a vaga atinge o auge no reinado de D. Pedro II», refere a historiadora.
Entre os recém-chegados há também milhares de portugueses e se não se tivesse legislado de forma a colocar um freio a essa tendência, Portugal teria ficado desprovido de gente. «Nessa altura, e do ponto de vista estratégico, interessava à Coroa povoar as colónias africanas».
Os primeiros imigrantes suíços são católicos e os das vagas sucessivas são já protestantes, pois o factor religioso deixara de ser determinante. Realidade multicultural que já era, o Brasil tornar-se-á também realidade multi-religiosa e sincrética. «As sucessivas vagas de imigração fizeram desse país um verdadeiro laboratório da humanidade», nota Maria Adelina Amorim.
Intrinsecamente ligado a «esse empreendedorismo e à sua eficácia» o monsenhor Miranda Malheiro é, sem dúvida, um dos grandes responsáveis da imigração estrangeira para o Brasil.
Hoje em dia, muitos descendentes dessas primeiras famílias alimentam a sua identidade e lugares de memória através de blogues e feitura de árvores genealógicas. «É uma das comunidades com melhores possibilidades para ser estudada, já que se estuda a si própria. Têm muito orgulho do seu passado, que não é assim tão antigo e acompanha a história do Brasil recente como país independente», esclarece Maria Adelina Amorim.
Na altura em que esses suíços demandavam o Novo Mundo estávamos a três anos da independência do Brasil. «Eles são já, de facto, brasileiros. E nas Américas fazem uma nova Suíça. Não há um só Brasil, há múltiplos brasis por onde Portugal coseu os espaços e as histórias e as vidas das pessoas. Portugal é, nesse sentido, o grande construtor, não podemos esquecer isso», salienta a nossa entrevistada.
Precisamente nessa época, em 1816, para sermos precisos, parte para o Rio de Janeiro a denominada missão artística francesa. Compunham-na os melhores artistas desse país e iam prontos a gravar, pintar, desenhar tudo o que vissem. Apesar de franceses – nossos inimigos declarados – tolerava-os o rei por serem artistas e cientistas; a verdade é que, alguns deles, eram também espiões. «Apesar de tudo, a sua actividade estava sob controlo. Há um desenho de Debrais, um dos mais importantes membros dessa missão, que representa Nova Friburgo», informa Adelina Amorim.
Também não ficou alheio a essa iniciativa o monsenhor Miranda Malheiro. A determinada altura, e durante bastante tempo, «pelo menos vinte anos», corresponde-se com o abade Henri Grégoire, personagem famosíssima na época e absolutamente fundamental para as questões das independências dos países da América Latina, embora seja pouco provável que Malheiro se tenha encontrado com ele. Como é sabido, a Revolução Francesa veio desencadear uma série de mudanças radicais no Novo Mundo. Henri Grégoire é uma espécie de ideólogo da independência do Haiti, naquela que é considerada a grande revolução dos escravos africanos.
«Temos uma amplitude de vinte anos em cartas que foram escritas e que hoje estão no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, facto que nos leva a perguntar: afinal, quais eram as convicções deste nosso monsenhor?», pergunta a investigadora. Se por um lado o entusiasma alguns dos ventos revolucionários, não deixa de ser Malheiro um executor da política e estratégia de D. João VI. Iniciava-se nessa altura, embora lentamente, a tentativa de abolição da escravatura, processo que levaria muitíssimo tempo a concretizar. Essa maleita só terminaria em 1889, era o Brasil independente há sessenta anos.
«Já em 1807, um ano antes da chegada de D. João VI, houvera uma rebelião de escravos negros africanos de proveniência islâmica ligados a Pernambuco (a chamada Revolução Republicana de Pernambuco) que seria abafada e fortemente reprimida», lembra a investigadora.
Para que se radicassem os europeus, expulsos seriam dos seus habitats naturais os nativos, «os ameríndios goitacazes». Tudo isto fazia parte de um projecto da Corte no sentido de «civilizar» o interior do Brasil – «a civilização dos povos» – mas sempre com pessoas brancas de origem europeia.
«Miranda Malheiro, apesar do seu humanismo, não deixou de ser um homem do sistema. Ao albergar pessoas que estavam em absoluta necessidade, contribuiria para a expulsão de outras, da sua própria terra», explica Maria Adelina Amorim.
Multifacetada figura da cultura, da economia, da jurisprudência, da política e da vida militar, que se destaca em praticamente em todas as vertentes da vida humana, «inclusive a proteçcão da missão artística francesa», Malheiro é uma figura charneira do seu tempo, «bem demonstrativa do homem português nas suas múltiplas funções, com todas as virtudes e defeitos».
Enquanto caminha para a sua independência, o Brasil institui uma série de ordens honoríficas para recompensar as pessoas que se destacavam nos serviços à novel nação em gestação. Monsenhor Miranda Malheiro tê-las-á todas. Todas as comendas possíveis, inclusivamente a Ordem da Senhora da Conceição.
Usufruiu também de uma pensão dada pelos «serviços prestados no império», pecúlio que acrescentaria às vastíssimas propriedades que possuía no Brasil e em Portugal, neste último caso, espólio familiar. Miranda Malheiro era detentor de uma fortuna imensa. «Existe algures na Biblioteca do Rio de Janeiro o seu testamento, documento importantíssimo quando se fizer sobre ele um estudo mais alentado, como diriam os brasileiros», nota Amorim.
Miranda Malheiro não mais regressaria a Portugal e permanece uma personagem mal conhecida em Guimarães, a sua terra natal, onde nem sequer uma rua arvora o seu nome. No Brasil, no entanto, tem muitas, e sabe-se até onde foi sepultado: uma capela sua de Santana onde acabou os seus dias.
Não consta que tenha deixado descendência directa, apenas sobrinhos e sobrinhos netos e é possível que muito do seu património ainda exista, quer em Portugal, quer no Brasil, pois a capelinha onde foi enterrado seria desmontada e destruída para que passasse ali a famosíssima ferrovia que vai ligar Nova Friburgo ao Rio de Janeiro «levando-a ao seu definitivo desenvolvimento até ao limite que hoje conhecemos – um dos locais mais desenvolvidos do Brasil, tecnologicamente e industrialmente». Isso só foi possível depois de todas aquelas serras serem rasgadas pela, agora famosa, rodovia D. Pedro II, que irá destruir uma série de acervos antigos, onde se inclui a capela do monsenhor de Miranda, mas que fica ligada aquilo que Miranda Malheiro sempre quis: criar uma nova via de desenvolvimento para o Brasil.
Joaquim Magalhães de Castro