Paradigma Incorrecto

Viver com dignidade na sobriedade

«Pensava-se que o crescimento global beneficiava a todos. Porém, particularmente nos últimos vinte anos, parece que as desigualdades aumentam, tornando cada vez maior o fosso entre ricos e pobres»

Finance et Dévelopement

O modelo económico que permitiu a prosperidade durante algumas décadas teve como alavanca fundamental os rápidos e profundos progressos tecnológicos, que proporcionaram uma melhoria considerável das condições de vida numa parte razoável do planeta, ainda que à custa do mais absoluto esquecimento ou até do desprezo da outra parte. Apesar disso, a nossa sociedade está bem longe de ser um corpo saudável, patenteando, pelo contrário, sintomas reveladores de graves desequilíbrios e disfunções.

O mito do progresso ilimitado deu lugar ao “desencanto do mundo”, como reconheceu recentemente um editorial de “Finance et Dévelopement”, publicação insuspeita, por ser porta-voz do FMI: «Pensava-se que o crescimento global beneficiava a todos. Os ricos tornar-se-iam talvez mais ricos, mas todos aproveitariam dessa riqueza e veriam aumentar o seu nível de vida. Porém, particularmente nos últimos vinte anos, parece que as desigualdades aumentam, tornando cada vez maior o fosso entre ricos e pobres».

O neoliberalismo, depois de se alcandorar como mito propiciador do progresso global, mostrasse agora uma divindade cruel que atenaza multidões de vítimas nas suas aterradoras mandíbulas.

 

A ILUSÃO DO CRESCIMENTO ECONÓMICO

A presente situação sociopolítica confirma com preocupante crueza o diagnóstico de Gandhi: «A política sem princípios, o comércio sem moral, a riqueza sem trabalho, a ciência sem humanidade, a educação sem carácter, a religião sem sacrifício, o prazer sem consciência: estes são os sete pecados que estão na base da degeneração das sociedades».

As medidas avançadas até agora pela nossa classe política para sairmos da crise que nos asfixia mais não são do que reedições da estafada mezinha milagrosa do regresso ao crescimento através do relançar do consumo.

Hoje, é por demais evidente que essa solução é perfeitamente ilusória a longo prazo, face aos limitados recursos do planeta. Ela é também uma proposta empobrecedora, porque fecha a pessoa no unidimensional mundo dos objectos transaccionáveis.

 

NÃO SÃO NUMEROS, SÃO PESSOAS

Não podemos esquecer que as mudanças dos sistemas só se tornam eficazes através de revoluções que passam pelo interior de cada um de nós. É verdade que não podemos dispensar uma argumentada crítica das lógicas mercantis que provocam muitos dos desregulamentos das sociedades humanas. Mas de nada valerá essa lucidez de análise, se ela não conduzir também a uma reformulação de prioridades que ponham a pessoa humana no centro de tudo.

Como nos relembra Mia Couto, «o mundo só pode ser salvo, se esse mundo nascer em nós e nos fizer nascer nele».

A actual crise económica e financeira é um sintoma de desequilíbrios muito mais profundos, que exigem uma refundação dos valores e dos laços entre o homem e natureza, o que supõe profundas alterações dos nossos modos de vida, um reequilíbrio entre a vida activa e a vida interior, que possibilite uma nova abertura à transcendência.

 

PRECISAMOS DE UTOPIAS

Nem sempre teremos uma consciência explícita do que devemos fazer, não só porque a nossa consciência pode estar obscurecida por razões que se prendem com circunstâncias do nosso passado individual ou colectivo, mas também porque nos encontramos diante de situações objectivamente complexas, face as quais e, por vezes, muito difícil discernir o caminho a percorrer.

Mas tais dificuldades não se resolvem caindo no conformismo daqueles que se acomodaram à ideia de que não vale a pena tentar outra utopia. Esse é um dos males da paralisia cívica de que enfermam os paises, na hora actual.

Os desafios políticos e sociais do nosso tempo ganharam uma tal urgência que não se compadecem com os expedientes de sobrevivência nem com os apelos patéticos a unanimidades pusilânimes, protagonizadas por alguns dos nossos governantes. Essas propostas diluem-se no artifício das palavras, que rapidamente parecem suspeitas e, de seguida, desqualificadas.

 António Ribeiro

In Mensageiro de Santo António

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