As tragédias dos nossos dias
No início de cada ano, o Papa recebe o corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé, particularmente numeroso porque reúne mais países que os representados junto da União Europeia ou das grandes potências. Num salão enorme e magnífico do Vaticano, diante dos embaixadores solenemente trajados, é costume o Papa sintetizar as grandes preocupações da Igreja. A sua simplicidade contrasta com o cenário magnificente e, sobretudo, a sua visão do mundo não tem nada a ver com os conflitos de interesses que movimentam a vida internacional. Os Papas – os anteriores, como agora o Papa Francisco – ocupam-se de temas em que poucos pensam e de um ponto de vista novo, para aqueles profissionais calejados da diplomacia internacional.
Há qualquer coisa de tão verdadeiro no cuidado genuíno da Igreja por cada pessoa e por cada povo que praticamente todos os países do mundo se fazem representar no Vaticano, independentemente da sua religião maioritária. Nestas cerimónias sem paralelo, os embaixadores dos países em guerra têm a oportunidade de se cumprimentar e de ouvir juntos a mensagem que o Papa lhes dirige.
No passado mês de Janeiro, o Papa Francisco referiu com muita mágoa as tragédias que ensanguentam a terra, a começar pela guerra na Ucrânia e na Faixa de Gaza. «As violações graves do direito internacional humanitário são crimes de guerra, e não basta resolvê-los, é preciso preveni-los», disse. A comunidade internacional não está a conseguir defender os fracos das prepotências imperialistas dos fortes. Ao ouvir estes apelos cada um deve perguntar-se se está a fazer tudo o que pode para promover a paz. Os que se imaginam em segurança, alheios ao sofrimento dos outros, não reparam talvez que, como diz o Papa, o mundo «é atravessado por um número crescente de conflitos que transformam pouco a pouco aquela que eu defini várias vezes como uma “terceira guerra mundial a prestações”, num conflito global propriamente dito».
Somam-se a estas guerras as violências na Nicarágua, no Cáucaso, em África… E o drama das populações que fogem das zonas de conflito para os países economicamente mais desenvolvidos, à procura de paz. E as perseguições anti-semitas e anti-cristãs.
Afrontando os clichés da moda, o Papa denunciou todos os atentados contra a vida humana, a começar pelo horror do aborto de bebés no seio da mãe e a eutanásia. «A vida humana deve ser sempre protegida e estimada, mas constato amargamente que, sobretudo no Ocidente, se continua a difundir a cultura da morte que, em nome de uma piedade fingida, descarta as crianças, os anciãos, os doentes», lamentou. O embaixador português teve de ouvir sem protestar esta denúncia frontal da decadência de Portugal.
As crianças têm de ser respeitadas. «Uma criança é sempre um dom e jamais pode ser objecto de um contrato», sublinhou. Em particular, continuou, «a gestação de aluguer, que ofende gravemente a dignidade da mulher e do filho, é uma coisa desprezável, que explora a necessidade material da mãe». É dever da comunidade internacional proibir em absoluto as barrigas de aluguer.
Quando têm o privilégio de ouvir o Papa, os embaixadores já sabem que vão assistir a um momento singular em que se proclama a verdade sem olhar a conveniências políticas ou diplomáticas. Quase nenhum deles tem autonomia para defender em público certas coisas, por isso suponho que muitos invejem a independência da Igreja, acima dos jogos de poder, tantas vezes mesquinhos.
Possivelmente, muitos sentem a mesma repugnância pela ideologia de género que, como afirmou o Papa, «quer distorcer a Carta dos Direitos Humanos» da ONU. O Papa considerou esta ideologia «inaceitável», «perigosíssima» e uma «colonização ideológica» que ameaça a paz entre os povos.
Suponho que o embaixador português aplaudiu, como todos os outros, talvez com pena de representar um pequeno país mergulhado em corrupção e decadência “inaceitável” e “perigosíssima”.
José Maria C.S. André
Professor do Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa