Paixão de Cristo, segundo Memling

Páscoa na Arte

Da era paleocristã até aos nossos dias, de forma mais ou menos realista, ou abstracta, a arte tem descrito os prodigiosos acontecimentos da Paixão e Ressurreição de Jesus Cristo. Uma forma de guiar o olhar e os sentidos para a reflexão sobre as leituras, sobre o tempo pascal, a história da salvação humana a partir do sacrifício do Filho, de uma humilhação que se transforma em glória, de uma morte transmudada em vida. «Ó portas, levantai os vossos umbrais! Alteai-vos, pórticos eternos, que vai entrar o rei glorioso!» (Salmos 24,7). Estamos no tempo de aclamação do Senhor da Glória, como dizia São Paulo. Ou seja, Cristo, aquEle ao Qual quem se abrir recebe a Deus, como dizia o apóstolo de Tarso. Hoje, deixemo-nos guiar por uma obra magistral da pintura, de Hans Memling, grande pintor alemão (1430-1494), activo na Flandres. Numa só composição, temos toda a Paixão.

Trata-se de uma pintura, de complexa iconografia, a qual cumpre, além de funções ilustrativas e estéticas, preceitos devocionais, litúrgicos e latrêuticos (veneração). Ao todo representa vinte e três episódios da Vida de Cristo, combinados numa composição narrativa em torno de um tema central, que lhe dá o nome: as dezanove cenas da Paixão e Ressurreição de Jesus, além de três suas aparições posteriores (“Noli me Tangere”, com Maria Madalena; na estrada de Emaús; no mar da Galileia).

Refira-se que esta obra foi encomendada por Tommaso Portinari, um banqueiro italiano estabelecido em Bruges (Flandres, Bélgica), o qual aparece pintado ajoelhado, no canto inferior direito, em simetria com a esposa, Maria Baroncelli, posicionada no canto inferior direito. Não se trata de uma grande pintura (56.7 × 92.2 cm), tendo estado, ao que parece, colocada num altar da igreja de São Tiago em Bruges. Entre 1510 e 1520 foi incluída na colecção privada de Cosme I de Florença, passando mais tarde para o seu actual detentor, a Galeria Sabauda, na Itália. Terá sido pintada, segundo Vasari, em 1471 (ou 1470), por Memling.

 

Iconografia

A composição desenvolve um caleidoscópico microcosmos citadino, no qual, a partir de um ponto de visão elevado, o autor captura os episódios da Paixão de Cristo, num encadeamento de episódios em ritmo dinâmico, desde a entrada messiânica em Jerusalém (Ramos), no canto superior esquerdo, até à Crucifixão, em oposição à direita, culminando na última aparição, no mar da Galileia, junto a Tiberíades. Jerusalém surge como uma cidade idealizada, magnífica, com um perfil de silhuetas de torres e pináculos, no primeiro plano compositivo. A paisagem em fundo serve de cenário de fundo, encaixando aí também várias cenas, sempre numa fácil legibilidade, consistência e ritmo narrativo. O Evangelho aparece vivido no contexto diário da cidade, nos detalhes realistas.

A narração inicia-se no canto superior esquerdo, com a entrada de Jesus em Jerusalém, montado no jumentinho. Depois, temos a expulsão dos mercadores do templo, situado numa pequena varanda sobre uma pequena praça. Abaixo, está a Traição de Judas, vislumbrando-se, através da parede aberta de um edifício, a Última Ceia. Mais abaixo, em primeiro plano, surge a oração no Getsêmani e a prisão de Cristo, com a cena em que Pedro mutila a orelha de Malco. Acima, na praça central, eis Jesus perante Pilatos, a feitura da Cruz e as três negações de Pedro, em frente de um edifício onde dois espectadores, com um galo solitário empoleirado numa janela. Ao centro, sob o arco de um edifício majestoso, ocorre a flagelação, com Jesus amarrado à coluna e despojado de seu manto, abandonado no chão. À direita, estão a troçar Cristo, num edifício, e depois aparece a segunda pergunta de Pilatos (num edifício um pouco mais estreito, à direita) e a apresentação de Jesus diante da multidão, quando se decide libertar Barrabás (talvez o homem nas sombras). Os gestos do povo reunido na cena são muito visíveis, com braços levantados e cruzados, em sinal da negação da graça de Jesus.

Começa o Caminho da Cruz, com a procissão de pessoas que saem das muralhas da cidade e da queda de Cristo no primeiro plano direito, assistido por Simão de Cirene. Em seguida, olhemos para o fundo da pintura, no centro descaindo para a direita: Cristo é pregado na cruz; seguindo com o olhar para a direita, vemos o Descimento da Cruz e a deposição na sepultura, mais à direita. Depois, temos a Ressurreição do Senhor e a derrota dos demónios durante a descida ao Limbo. Diante da cena da Ressurreição, temos um homem no caminho, com os filhos pela mão, olhando para a saída de Cristo do túmulo, numa forma de interligação de partes da pintura, num sentido homogéneo mas também de dimensão soteriológica. Lá em cima, no canto superior direito, o “Noli me tangere” (“Não me toques”) de Jesus a Madalena, atrás a estrada para Emaús e, à esquerda um pouco, o lago de Tiberíades e a aparição de Jesus aos Apóstolos.

 

Síntese interpretativa

Estamos na Devotio Moderna, em fins do séc. XV, tempo de renovação espiritual no Ocidente, de elevando cristocentrismo, em que a Vida de Jesus e a Paixão, principalmente, ocupam o lugar de destaque da nova espiritualidade. Há um convite a uma peregrinação mental, qual viagem imaginária seguindo os passos de Cristo, a partir das narrativas dos Evangelhos. A arte plasma e materializa essa dimensão espiritual em formas e cores, contrastes lumínicos e efeitos de cores, numa sequência narrativa de convite à revivência da Paixão. A arte como ilustração, não apenas para suprir lacunas na literacia mas também na iliteracia espiritual de muitos.

Num só olhar, numa pequena composição sequencial, podemos contemplar toda a Paixão, páginas e páginas de texto e doutrinação convertidos em imagens. Uma só visão, uma só obra, mas tantos detalhes, encadeados e sublimes, com alegorias e simbologias várias, das cores às formas, às cenas. Jesus tudo aceita, a fim de redimir a humanidade pecadora: traição, calúnia, humilhação pública, a tortura brutal, o abandono total. Auto-sacrifício. A arte cristã sublimou essa dimensão de sofrimento, em vez de comemorar a invulnerabilidade e poder, como as religiões politeístas fazem com os seus deuses. Não, aqui exalta-se a enorme fragilidade de Jesus, da pele e ossos sob o chicote, da coroa de espinhos, das flagelações e ultrajes corporais. Sozinho, com o corpo vilipendiado, a sangrar, em chagas, abandonado.

A arte é um dos instrumentos da fé, exaltando visualmente, neste caso, as cenas da Paixão. Antes era para os que não sabiam ler os textos bíblicos, hoje, e como sempre, para os que sofrem de “iliteracia espiritual”, de “analfabetismo” caritativo…

Vítor Teixeira 

Universidade Católica Portuguesa

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