PAIS DA IGREJA (16)

PAIS DA IGREJA (16)

Os primórdios da lectio divina

Na Audiência Geral de 25 de Abril de 2007, o Papa Bento XVI mencionou que Orígenes provocou um “ponto de viragem irreversível” na “história da teologia e do pensamento cristão”. O Santo Padre sublinhou que esta viragem consiste em basear a teologia na explicação das Escrituras. Ele é “o primeiro exegeta científico da Igreja Católica” e pode, portanto, ser considerado o “fundador da ciência bíblica” (Quasten, II, págs. 44 e 45).

O “primeiro princípio de Orígenes é que a Bíblia é a Palavra de Deus, não uma palavra morta aprisionada no passado, mas uma palavra viva dirigida imediatamente ao homem de hoje. O segundo princípio é que o Antigo Testamento é iluminado pelo Novo, assim como o Novo só revela a sua profundidade quando é iluminado pelo Antigo. O vínculo entre os dois é determinado pela alegoria” (Quasten II, pág. 92). Para compreender a Sagrada Escritura é preciso conhecer o sentido literal, o sentido moral e o sentido espiritual ou místico. No Século IV, Santo Agostinho expandiria estes sentidos da Escritura para quatro (cf. Catecismo da Igreja Católica n.os 115-119).

Na sua obra “Hexapla” (“Bíblia de seis colunas”), Orígenes revela o desejo de compreender a Bíblia no seu sentido literal. As colunas foram organizadas da seguinte forma: 1) Texto hebraico da Bíblia; 2) Texto hebraico em caracteres gregos (como guia de pronúncia); 3) Tradução grega de Áquila; 4) Tradução grega de Symmachus; 5) Tradução grega na Septuaginta; 6) Tradução grega de Theodotion (cf. Quasten II, pág. 44). As últimas quatro colunas forneceram um guia para a correcta interpretação das duas primeiras.

Para Orígenes, porém, o conhecimento das Escrituras não era suficiente. Era preciso rezar com a Escritura e, como consequência, apaixonar-se por Cristo (cf. Audiência Geral do Papa Bento XVI de 2 de Maio de 2007). Orígenes explicou esta necessidade de conhecer através do amor com base no significado hebraico do verbo “conhecer”, que pode incluir o acto humano de amor, como na passagem de Génesis 4, 1: «Adão conheceu Eva, sua mulher, e ela concebeu». Para alcançar este amor, Orígenes recomendou a lectio divina.

O Papa Bento XVI cita a recomendação de Orígenes na sua Carta a Gregório: “‘Dedica-te à lectio [leitura] das divinas Escrituras; aplica-te a isto com perseverança. Compromete-te na lectio com intenção de acreditar e de agradar a Deus. Se durante a lectio te encontrares diante de uma porta fechada, bate e abrir-te-á aquele guardião, do qual Jesus disse: «O guardião abri-la-á» (João 10, 3). Aplicando-te assim à lectio divina, procura com lealdade e confiança inabalável em Deus o sentido das Escrituras divinas, que nelas se encontra com grande amplitude. Mas não deves contentar-te com bater e procurar: para compreender as coisas de Deus é-te absolutamente necessária a oratio’. Precisamente para nos exortar a ela o Salvador nos disse não só: ‘Procurai e encontrareis’, e ‘Batei e servos-á aberta’, mas acrescentou: ‘Pedi e recebereis’ (Ep. Gr. 4)”.

No Século IV, o bispo Ambrósio de Milão aprenderá estes princípios com as obras de Orígenes e os transmitirá a Santo Agostinho e à vida monástica que ele inspirou. Mais tarde, no Século VI, Bento de Núrsia também os adoptará, bem como o monge cartuxo Guigo II, no Século XII, que desenvolverá um processo constituído por quatro etapas: lectio, meditatio, oratio, contemplatio (leitura, meditação, oração, contemplação).

Na sua Exortação Apostólica Verbum Domini, o Papa Bento XVI descreve os passos para a lectio, no ponto 87: “Começa com a leitura (lectio) do texto, que suscita a interrogação sobre um autêntico conhecimento do seu conteúdo: o que diz o texto bíblico em si? Sem este momento, corre-se o risco que o texto se torne somente um pretexto para nunca ultrapassar os nossos pensamentos. Segue-se depois a meditação (meditatio), durante a qual nos perguntamos: que nos diz o texto bíblico? Aqui cada um, pessoalmente mas também como realidade comunitária, deve deixar-se sensibilizar e pôr em questão, porque não se trata de considerar palavras pronunciadas no passado, mas no presente. Sucessivamente chega-se ao momento da oração (oratio), que supõe a pergunta: que dizemos ao Senhor, em resposta à sua Palavra? A oração enquanto pedido, intercessão, acção de graças e louvor é o primeiro modo como a Palavra nos transforma. Finalmente, a lectio divina conclui-se com a contemplação (contemplatio), durante a qual assumimos como dom de Deus o seu próprio olhar, ao julgar a realidade, e interrogamo-nos: qual é a conversão da mente, do coração e da vida que o Senhor nos pede? São Paulo, na Carta aos Romanos, afirma: «Não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, a fim de conhecerdes a vontade de Deus: o que é bom, o que Lhe é agradável e o que é perfeito» (12, 2). De facto, a contemplação tende a criar em nós uma visão sapiencial da realidade segundo Deus e a formar em nós «o pensamento de Cristo» (1 Cor., 2, 16). Aqui a Palavra de Deus aparece como critério de discernimento: ela é «viva, eficaz e mais penetrante que uma espada de dois gumes; penetra até dividir a alma e o corpo, as junturas e as medulas e discerne os pensamentos e intenções do coração» (Hb., 4, 12). Há que recordar ainda que a lectio divina não está concluída, na sua dinâmica, enquanto não chegar à acção (actio), que impele a existência do fiel a doar-se aos outros na caridade”.

Pe. José Mario Mandía

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