Os Kristang da Península malaia

Porta de Santiago

Diversas empresas rodoviárias dispunham de confortáveis veículos que cobriam a distância que separa Singapura de Malaca em três horas apenas. Apanhei o autocarro que partia às duas e trinta da manhã pois queria demandar Malaca ao nascer do dia. Impossibilitado de conciliar o sono, revisitei as memórias da Malásia que conhecera há década e meia; já então fascinante mescla de modernas auto-estradas com vendedores de rua; de templos hindus com pagodes taoistas; de igrejas com mesquitas. Tinha os seus habitantes como os mais simpáticos e atenciosos da Ásia, fossem malaios, chineses, indianos ou das diversas tribos autóctones que pontilhavam o Taman Negara, uma das florestas tropicais mais antigas do planeta, e que, inevitavelmente, tinham sido ultrapassadas pelo mundo moderno. Ultrapassadas pela privilegiada posição social dos malaios, pelo sucesso comercial dos chineses e pela força religiosa que unia os indianos. Lembro-me de sair de um hotel chinês com ventoinhas de tecto dos anos trinta em Georgetown, na ilha de Penang, e, no espaço dum minuto apenas, deparar com um colorido templo hindu e cruzar com um ruidoso grupo de colegiais muçulmanas de véu na cabeça a caminho da escola. Esse era o mais óbvio sinal da multi-etnicidade da costa oeste, já que no lado oposto, reputado pelas pristinas ilhas de Tioman e Perhentian, o ambiente era bem mais relaxado apesar de ser o Islão a ditar as regras. A diversidade paisagística-cultural fazia-se sentir dos areais de Cherating aos papagaios de papel e à deliciosa comida do mercado nocturno de Kota Bharu, já bem perto da fronteira tailandesa.

Como se fizessem parte de outro país, os territórios malaios de Sarawak e Sabah, no grande Bornéu, permitiram-me incursões na floresta tropical de Bako e Mulu, uma descida do rio Rajang e o contacto directo com os dayak, sempre a sonhar com as aventuras de Sandokan, o mais conhecido dos heróis idealizados por Emílio Salgari que na minha infância tanto me fizeram sonhar. Menina dos olhos do Bornéu, Kinabalu era não só uma das montanhas mais fáceis de escalar, como santuário de biodiversidade e vida selvagem, afinal não tão longe assim de outros santuários, o dos orangotangos de Sepilok e dos quelónios do parque nacional da Ilha das Tartarugas.

Partes menos conhecidas da grande Malásia, como o porto de Benjarmasin, no Bornéu, e Panhang, na costa oeste, contaram com feitorias e comunidade portuguesa residente.

Recordações destas ilustraram a jornada que decorreu sem sobressaltos, e, pela manhã, eis-me na parte moderna de Malaca em busca da Robin’s Nest, pensão já minha conhecida, que ali estava, no mesmo local e com a mesma gerência, embora o Travellers Lodge e a Kancil Guest House fossem agora opções a considerar. Num mundo em constante mudança é sempre agradável darmo-nos conta que certos locais que apreciamos não mudaram nem vão mudar tão cedo. Não nego que, se o orçamento o permitisse, preferiria ficar alojado em locais mais genuínos, como o Central, Cathay ou Magestik, inteiramente renovados e transformados em unidades hoteleiras de charme, numa rua onde tinham aberto portas restaurantes que se aproveitavam da fama provocada pelo bairro dos malaqueiros. Era o caso do Hotel Portugis, gerido por um casal de chineses de Singapura, que de português só mesmo as faixas verde-rubras que enfeitavam o átrio de entrada.

Todo o desenho arquitectónico no centro histórico da velha Malaca, dominada pelo vermelho ocre, é assim uma espécie de adaptação holandesa do estilo indo-português. Pouco se acrescentou aos motivos decorativos que encontramos noutras cidades da região, como Macau, por exemplo, onde os holandeses nunca estiveram, apesar das tentativas. Em grande destaque surge a Christ Church Melaka, templo protestante com o pavimento pejado de lajes tumulares com inscrições portuguesas, pois foram retiradas das nossas igrejas aquando a destruição da cidade pelos calvinistas. De pé, ficaram apenas as paredes da igreja da Nossa Senhora do Monte, erguida e 1571 no outeiro de São Paulo. Este era a templo dos jesuítas, várias vezes visitado por Francisco de Xavier que aqui repousou temporariamente os ossos, antes de ser transladado para Goa. Encostadas às paredes interiores, lápides funerárias com inscrições em Latim, Português e Holandês. Entre elas, destaco a lápide de D. Miguel de Castro, um dos capitães da fortaleza da Malaca, posto muito apetecido naquela época.

Outro importante testemunho é a Porta de Santiago, único sinal visível da outrora imponente “A Famosa”. Mas até aí a mão calvinista se fez sentir, substituindo o brasão original pelo da Companhia das Índias Ocidentais, datado de 1670. Ali perto, embutida num muro, uma laje com o brasão de armas de Afonso Henriques, encontrada quando se escavava a colina de Malaca, mostra-se ao mundo com a seguinte nota explicativa em Inglês: “Arms of Alfonso Henriques, first king of Portugal, a Prince of the Royal House of Burgandy, 1143-1185, conqueror of the 5 moorish kings in the battle of Ourique and Castro Verde in 1139. This stone was found in excavating the hill in Malacca”.

Entre os visitantes de etnia chinesa cultivava-se a superstição de que quem inscrevesse o seu nome numa das paredes interiores da igreja convocava automaticamente a boa sorte. Irrelevantes o instrumento ou método de escrita, fosse pedaço de cerâmica, caneta de feltro ou até cuspo, o importante e que se lá deixasse gravado o nome. Isto me disse uma formosina de trinta e poucos anos que se preparava para escrevinhar o seu nome na taipa. É claro que a desencorajei. Surpreendida com o reparo, reagiu de modo educado, escusando-se: «– Mas a guia turística garantiu-me que isto me traria boa sorte».

Acto contínuo, chamou a dita cuja que veio com o mesmo discurso. Perguntei-lhe se era budista, ao que respondeu afirmativamente. Perguntei depois se gostaria que me pusesse a escrever nos muros de um templo erguido pelos seus antepassados, e ela baixou a cabeça. Indiquei-lhe depois uma placa ali afixada que ameaçava com multas, e até prisão, a quem vandalizasse monumentos históricos. Dessa vez desculpou-se, baixando ainda mais a cabeça e fazendo-me sentir a modos que zeloso polícia ou severo professor, o que não foi nada agradável. Mas o certo e que não podia ficar calado. Todos nos habituamos a conviver com os grafitos que conspurcam moradias, palácios, igrejas e castelos medievais, mas o caso torna-se bastante mais grave quando são os próprios guias turísticos – de quem se espera sensibilidade e consciencialização – a encorajar semelhantes actos de vandalismo.

Joaquim Magalhães de Castro

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