São Policarpo de Esmirna

Um dos Padres Apostólicos

No passado dia 23 de Fevereiro, há 1860 anos, na bela cidade costeira de Esmirna, ou Izmir, na actual Turquia, morria um dos três grandes Padres Apostólicos da Igreja Primitiva: Policarpo de Esmirna. Os outros, é justo saber, foram Clemente de Roma e Inácio de Antioquia. Todos eles trabalharam nos grandes pólos difusores da Igreja Primitiva, da fé e da cultura cristãs, a par de Alexandria e de Jerusalém, centros de fusão de culturas antigas, como a egípcia, a judaica, grega e latina. E porquê Apostólicos? Porque conheceram alguns dos apóstolos, como Policarpo, que foi discípulo de S. João, o autor do quarto Evangelho e, a par de Paulo, o primeiro grande teólogo da nova Igreja. Apostólicos porque foram também activos no labor da transmissão do testemunho dos que com Ele aprenderam directamente, deles receberam a marca do primeiro grupo e a disseminaram por novos caminhos e novas comunidades. Apostólicos ainda porque escreveram textos fundamentais a partir da partilha desses testemunhos e da sua aprendizagem com os apóstolos, logo foram autores das primeiras obras de apologia, defesa e explicação da nova fé. Trabalho árduo e difícil, naqueles tempos difíceis, mas levado até ao fim. E até ao martírio também, pois pagaram com a vida a abnegação e o testemunho vivo.

Pouco se sabe da vida de Policarpo, que terá nascido por volta de 69-70, embora alguns até atribuam a data de 89, que será inverosímil. Terá nascido em Esmirna, na Ásia Menor, maioritariamente grega (Jónia), filho de pais cristãos. Seu nome era Πολύκαρπος (Polýkarpos), “muitos frutos”, ou o “frutífero”. Conhecem-se hoje apenas duas fontes principais sobre a sua vida. Uma é o “Martírio de Policarpo”, de autor anónimo, uma carta da comunidade de Esmirna dirigida à comunidade cristã de Filomelio, cidade da Frígia (Noroeste da actual Turquia). Nesta carta narra-se o martírio do santo. Outra importante fonte, talvez a mais importante, é S. Irineu de Lyon, seu discípulo, que o menciona no “Adversus Haereses” (“Contra os Hereges”), bem como em cartas a Florino e também ao Papa Vítor. Irineu menciona ainda, nas suas obras, a “Carta de Policarpo aos Filipenses”, São Jerónimo refere também Policarpo, no seu “De Illustribus Viris” (XVIII), ou “Dos Ilustres Homens”, e Eusébio de Cesareia, na sua “História Eclesiástica” (IV 15, 1-43). Duas epístolas de Inácio de Antioquia referem também Policarpo, sendo uma delas dirigida ao santo de Esmirna e a outra aos habitantes desta cidade. Inácio de Antioquia, figura importantíssima do Cristianismo dos primeiros séculos e seu companheiro, cita ainda Policarpo em cartas que aquele enviou aos cristãos de Éfeso e Magnésia, na Ásia Menor. Tertuliano, um autor cristão desta época, alude também a Policarpo, o que cauciona ainda mais o valor e dimensão não apenas teológica mas também histórica do santo de Esmirna, plenamente validados pelos autores acima citados. A sua autoridade e valor pastoral estão mais do que comprovados, sendo os seus testemunhos ou alusões, directas ou indirectas, indicadores e fontes de informação acerca das comunidades cristãs coevas. Cumpre ainda mencionar que, em 1999, alguns fragmentos coptas dos séculos III a VI sobre Policarpo foram publicados sob o nome de “Fragmentos de Harris”.

Não serão muitas as fontes, mas todas de autores e obras fundamentais da história da Igreja Primitiva, o que atesta a grandeza e importância de Policarpo, que é por isso, justamente, considerado um dos Padres da Igreja antiga mais referenciais. Depois da narrativa da morte de Estevão, Protomártir, a descrição do martírio de S. Policarpo de Esmirna é considerado a segunda referência, em importância e autenticidade, no género da literatura martirológica, na história do Cristianismo primitivo.

Com Papias de Hierápolis, foi discípulo de João o Presbítero (ou Apóstolo, ou Evangelista… três figuras ou a mesma, de um deles foi), que provavelmente o consagrou bispo de Esmirna, durante o reinado do imperador romano Trajano (98-117). Terá sido prelado daquela cidade jónica até 23 de Fevereiro de 155, quando ali foi martirizado (na fogueira, ou esfaqueado, já que as labaredas não o queimava…), o que equivale a referir que serviu a comunidade como seu bispo durante cerca de 40 anos, senão mais. Foi um bispo estimado no seu tempo, com autoridade, pastoral como teológica, tendo até em 154 sido escolhido e convocado para ir a Roma como representante da Igreja da Ásia, para discutir com o Papa Aniceto (c. 157-168) a questão da data de celebração da Páscoa. As datas referidas são as que se consideram ser as do Papado deste antigo prelado sírio, amigo de Policarpo e dos teólogos asiáticos contemporâneos. Mas o “Annuarium Ponitificum”, o registo oficial dos Papados, dá o início do pontificado de Aniceto em 153. Mais importante do que as datas, é o prestígio intelectual e pastoral de Policarpo, afamado também pelas suas posições contra as heresias, em particular a Docetista (o Docetismo defendia que o corpo de Jesus Cristo era uma ilusão, a sua crucificação terá sido apenas aparente, não real), de Marcião e Valentino. Em Roma, como em Esmirna, combateu arduamente esta heresia, como outras que fazem parte do Gnosticismo. Marcião (ou Marciano), por exemplo, segundo Irineu de Lyon, terá encontrado Policarpo em Roma, na ida deste até junto de Aniceto, fora apelidado pelo bispo de Esmirna como “primogénito do demónio”, tal como sugerira já na sua “Carta aos Filipenses”.

Foi Policarpo depois capturado em Esmirna, naqueles tempos difíceis dos primórdios da Igreja. Estácio Quadrado, procônsul romano, em nome do imperador Antonino Pio (138-161), acusou-o de recusar o sacrifício em nome do imperador, condenando Policarpo a ser queimado vivo no estádio da cidade de Esmirna.

Em conclusão, podemos afirmar que Policarpo de Esmirna ocupou um importante lugar nos primórdios da história da Igreja. Como escreveu S. Jerónimo, Policarpo foi discípulo de S. João, o mais novo dos Apóstolos. Além disso, é um dos primeiros autores cristãos, teólogos portanto. Para alguns, terá sido ele um dos compiladores e editores do Novo Testamento. Genuíno é o seu testemunho da doutrina dos Apóstolos, da comunidade de Jerusalém, da singularidade da intuição dos alvores do Cristianismo, mantendo porém o discernimento e a ortodoxia numa época em que eram muitas as versões e interpretações dos pensamentos e frases de Jesus e dos Apóstolos, por exemplo, pelo que combateu a heresia e os desvios doutrinais.

Vítor Teixeira

Universidade Católica Portuguesa

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