Ameaça dos aterros
O clima de tensão e desentendimento que se vivia no bairro traduzira-se na fraca participação na decoração de barcos durante a Festa de São Pedro. Num cartaz colado a uma tábua de madeira pregada no mastro de um deles podia ler-se o seguinte, em Malaio e em Inglês: «Nós, pescadores do Bairro Português, não somos pedintes». Logo depois, a interrogação: «Onde param os fundos monetários destinados aos pescadores?» Por cima, uma gigantesca fotocópia de uma reportagem que o The Sun dedicara ao assunto, alertando para o estado altamente degradado do embarcadouro local.
«– Esta vergonhosa situação prolonga-se há anos, e apesar das promessas ninguém fez nada», afirmava Patrick Félix, lembrando que o Comité de Acção dos Pescadores fora criado «há quatro anos», na sequência das primeiras ameaças ao tradicional modo de vida dos homens do mar. Nessa altura, a instalação de cabos telefónicos submarinos vieram interferir com as redes de pesca, limitando a captura de peixes. Graças à intervenção do Comité, os pescadores acabariam por ser indemnizados pelos danos causados.
Para que visse com os próprios olhos, Félix levou-me ao embarcadouro. «– Tenha cuidado, em baixo é tudo lama», alertava o pescador, procurando com um dos pés evitar os intervalos entre a madeira enquanto o outro testava a resistência das pranchas mais próximas. «– Já não é a primeira vez que caem pessoas».
Pedaços de madeira pregados de um modo aleatório. Era este o estado do pontão com quase duzentos metros que os homens com suficiente coragem para prosseguir a faina do mar tinham de enfrentar para alcançar os barcos quando a maré estava vaza. Isto, apesar dos novos aterros terem trazido lama para a costa e afastado para longe os caranguejos, amêijoas e robalos dos quais tiravam o seu sustento.
A situação era seguinte. Enquanto a autofagia típica dos lusitanos minava a alma dos malaqueiros, nos bastidores empresários do imobiliário ambicionavam os seus doze hectares de terreno, estando já planeado, desde o início dos anos 90, um enorme aterro para urbanização turística que encerraria toda a zona costeira. O empreendimento só não fora avante devido à crise económica que se vivia na época. Na realidade, esse Chão di Padre, continuava a ser-lhes “emprestado” pelo Governo malaio, e apenas por mais quarenta anos, o que provocava angústia entre os que se recusavam ver a comunidade como mera atracção turística.
«– Se vão urbanizar toda a costa, onde é que iremos pescar?», perguntavam os pescadores.
No decorrer de uma visita ao bairro, na qualidade de patrono das festividades de São Pedro e para se inteirar dos problemas locais, nomeadamente o estado do embarcadouro, o conselheiro estatal da província de Malaca, Datuk Wira Gan Boon Leong, de etnia chinesa, assegurava que, após um estudo do impacto ambiental e sócio-económico, o Governo decidira alterar substancialmente os planos iniciais. O político garantia que iria ser criada uma ilha artificial destinada às urbanizações, não junto à costa, como previsto, mas sim a um quilómetro ou dois de distância. Assim sendo, ficaria salvaguarda a ligação dos pescadores ao mar e preservado o seu modo de vida.
Essa afirmação, porém, não parecia convencer os homens do mar. Frescas na memória estavam as promessas caídas em saco roto quando, nos finais da década de setenta, se tinham feito os aterros perto de Banda Praya, a duas centenas de metros a norte do Bairro Português. Dos pescadores portugueses, chineses e malaios que ali residiam, restavam meia dúzia de barracas e uma pequena capela onde os católicos se congregavam aos Domingos.
«– Os nossos antepassados chegaram aqui depois de atravessar oceanos e oceanos, meses, anos a fio, e agora até o mar nos querem tirar», desabafava Gerard Denker, ex-residente de Banda Praya. «– Sem o mar não somos nada, desaparecemos culturalmente».
Temiam os pescadores que um eventual montante de compensações concedidas pelas empresas do ramo imobiliário caísse em mãos erradas. Patrick Félix não tinha dúvidas. Caso fosse parar ao painel, este dissolver-se-ia em três tempos e os pescadores não mais veriam um centavo. Por isso, ingenuamente sugeria, como alternativa, que o Governo português adquirisse o terreno e o “concedesse” aos membros da comunidade, salvaguardando uma cláusula que proibisse os residentes de transferir essa propriedade para fora do agregado familiar.
«– O nosso futuro permanece uma incógnita», dizia o pescador, que era também carpinteiro, pedreiro e cozinheiro. «– Se calhar quando cá voltar, daqui a uns anos, vai encontrar os descendentes de Albuquerque a mendigar nas ruas».
A confirmar as angústias do Patrick Félix, o Bairro Português via crescer de ano par ano – a norte, a sul e a leste – torres e mais torres de betão. Só faltava mesmo fechar o lado do mar. E depois, mais torres, em lugar das agradáveis casas térreas onde os kristangs de Malaca, bons apreciadores da pinga e foliões como ninguém na Malásia, resistem, demonstrando, com orgulho e estamina, a sua diferença.
Joaquim Magalhães de Castro