O nosso tempo

O princípio do fim de uma Igreja eurocêntrica?

Um Papa que se abre ao contacto com todos.

Um Papa que quer compreender sinceramente o nosso tempo.

Um Papa que olha para a Ásia, para África, para a sua América Latina, com olhos de quem não é nem será prisioneiro do Vaticano.

É o Papa do sorriso bom, uma referência moral incontornável já desta nossa aldeia global.

A sua eleição, há um ano e meio, como sucessor de Bento XVI, começou por ser um grande ponto de interrogação sobre o cardeal argentino, vindo de fora de Roma e, ainda por cima, de fora da Europa.

Era naturalmente mau que fosse de fora de Roma, onde prevalece uma certa cultura da Cúria, invocada como uma das grandes razões de não renovação da Igreja. E onde portanto pululam os defensores do status quo.

E mau, para mais, vindo de fora da Europa, desse vasto mundo de estranhas culturas e estranhos espíritos, apesar da catolicidade da Igreja… universal!

Igreja romana ou “do Médio Oriente”?

É que a matriz europeia da Igreja faz parte, e uma parte importantíssima por razões óbvias, como se sabe, do seu legado histórico.

Igreja Romana, a Igreja Católica poderia ser apelidada mais propriamente do Médio Oriente, em homenagem ao seu Fundador.

Talvez assim ficasse melhor vincado o seu “direito histórico” à partilha simbólica dessa mesma Terra Santa que alguns outros reivindicam como exclusivamente sua…. Mas romana foi e romana ficou, graças ao Imperador que a oficializou como religião do Estado, com a força complementar de, na chamada Cidade Eterna, terem sido executadas as duas mais poderosas figuras da Igreja recém-nascida, Pedro e Paulo.

Um Papa quase italiano

A ascendência italiana muito próxima do cardeal Bergoglio tranquilizou assim muitos espíritos, dentro do Conclave que o elegeu e, certamente, nos gabinetes situados nas proximidades da Praça de São Pedro.

E é esse homem vindo de longe que está a operar, há um ano e meio, uma revolução de mentalidades, de atitudes – que é a mais difícil de todas as revoluções.

Não é inabitual de facto ver-se, na História, as grandes transformações políticas e sociais desaguarem em novos sistemas de domínio, apenas com outro nome, sendo aqui obrigatória a referência à Revolução Francesa que destronou e executou Luís XVI para se esgotar, como processo histórico, na auto-coroação de Napoleão Bonaparte!

Novos eixos de um pontificado diferente

Analisando a personalidade do pontífice, vê-se nela duas características predominantes que são o que se pode considerar o centro inspirador das mudanças que o Papa deseja introduzir na Igreja.

A primeira é uma postura simples, modesta, humilde que não radica em nenhuma incapacidade congénita de uma personalidade porventura fraca, mas justamente no oposto: numa espiritualidade com raízes profundas que quem está atento percebe em cada gesto, em cada atitude.

Quem não é crente compreende, por ventura, com mais dificuldade, esta dimensão da personalidade do Papa.

Como não percebe ou é céptico relativamente à mesma dimensão da própria Igreja, “santa e ao mesmo tempo pecadora”,na insanável ambiguidade de tudo o que é humano.

Todas as manhãs, em Santa Marta…

Em cada início de manhã, Francisco partilha com os seus mais próximos, e afinal com todos, as suas reflexões inspiradas pelas leituras bíblicas do dia.

É a voz pausada, quase ciciante, dum homem à beira dos oitenta anos que há pouco mais de um ano viu a sua vida transformada num tremendo sacrifício permanente, de entrega e dedicação.

À Igreja e ao mundo.

Vale a pena ouvi-lo. Ou lê-lo.

Assemelho o Papa Francisco, nesta espiritualidade voltada para a acção, aos seus antecessores recentemente canonizados, João XXIII e João Paulo II. Homens abertos para os outros, para o mundo, para todo o mundo, esse seu movimento não o empreenderam sem muitas horas de meditação e de… genuflexório, num esvaziar de si próprios que constituiu e constitui a força mesma da sua caminhada.

Um Papa que gosta do mundo

A segunda característica inspiradora é que o Papa gosta do mundo, gosta das pessoas, partilha com todos misérias e angústias, sonhos e frustrações, vendo nesse mar de gente que ruma continuamente a São Pedro, para estar perto dele, ou o acolhe através do mundo, não uma abstracção, mas pessoas concretas com vidas concretas que ele toca fisicamente.

É por gostar do mundo que Francisco se tem tornado, na sequência aliás de João Paulo II, um peregrino do mundo.

E é nesse peregrinar que faz o diagnóstico dos males do nosso tempo.

E denúncia as causas dos conflitos que um pouco por toda a parte se generalizam, levando-o a falar de uma Terceira Guerra Mundial que não tem ainda esse nome.

E critica o egoísmo do sistema económico internacional, gerador de crescentes desigualdades.

Como denúncia em Lampedusa a tragédia dos milhares de pobres emigrantes que acolhem às portas da Europa em busca de uma vida mais digna, para sucumbirem tragicamente, em sucessivos naufrágios, às suas margens.

E, perante o recrudescer do extremismo religioso, ou que se faz passar por tal, apela ao diálogo entre religiões, como ficou demonstrado pelo inusitado momento que foi o receber no Vaticano o ex-Presidente israelita Shimon Peres e o líder palestino, presidente Abbas.

A Ásia no coração da Igreja

Segui com natural emoção a viagem do Papa a Seul.

Na catedral onde tantas vezes estive, ouvi a mensagem de paz e reconciliação do Papa dirigida a toda a família coreana.

A presença da Presidente Park Cheun Hye nas cerimónias religiosas foi para mim testemunho, para além da cortesia protocolar devida ao chefe de Estado do Vaticano, da imensa sabedoria de uma líder política – marcada pela tragédia familiar e do seu povo – que percebeu o quanto a Igreja e este Papa podem ser parceiros e amigos do seu país, no desenvolvimento autêntico de uma sociedade que atingiu níveis altíssimos de prosperidade material mas que não pode perder nem a identidade… nem a sua alma!

(*) Carlos Frota

(*) Universidade de São José

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