Caminhos do Brasil

Profeta Gentileza

O “Posto Madrugadão” não precisa de indicações suplementares para nos elucidar acerca do seu propósito. Já no que respeita aos estabelecimentos “Casa da Maria”, “Seis Bicos” e “Tira Três”, o melhor será que nos dêem algum tipo de explicação, pois senão ficaremos a pensar coisas menos consentâneas com a paisagem envolvente. Após o “Posto Madrugadão” segue-se o “Posto Rezendão”. Apenas dez quilómetros os separam. Em Portugal abusamos do “inho”; no Brasil a tendência para o exagero traduz-se no uso do “ão”. Até se compreende, se tivermos em conta as dimensões de cada um dos países.

Numa das subidas com que nos confrontamos entramos directamente no nevoeiro para logo descermos a magnífica Serra das Araras, onde nos temos a ver, pela primeira vez, com um verdadeiro serpentear de estrada. A meio da descida, um insinuante e perspicaz aviso rodoviário: “o radar passou mas a sua vida pode continuar”.

São muitas as lojinhas de berma da estrada com jacas e cocos expostos, “suco super gelado”, e muitos cachos de banana ouro e de banana prata. À semelhança das bananas, há também diferentes tipos de polícia: Polícia Rodoviária, Polícia Federal, Polícia Militar e Polícia Ambiental, essa sim, original nos seus propósitos e funções.

Modernas instalações da multinacional Dupont apresentam-se às portas do Rio, quilómetros antes dos inúmeros e proletários estabelecimentos de Atacado e Varejo e dos – já cá faltavam – templos evangélicos anunciadores dos subúrbios. «– Esta cidade pertence a Jesus», garante um vistoso poster da Igreja Nova.

 

RIO CINZENTA

Uma íbis no meio de um canal de água estagnada e um cavalo branco junto a uma montanha de esterco olham mansamente o asfalto, resguardados por uma barreira metálica. Admiro esta tenacidade, esta forma tão heróica de os animais se comportarem, independentemente do meio ambiente onde estão inseridos.

Esta é a primeira imagem da cidade que muitos consideram a mais bela do mundo. E poderá ser, em dias soalheiros, se a avistarmos do alto do Corcovado, de olhos fixos nas águas da Baía de Guanabara. Mas nada tem de belo o Rio de Janeiro quando entramos pelo lado oeste, por um istmo que parece uma ponte e uma ponte que parece um istmo, aeroporto do Galeão à nossa direita, depois da Ilha do Fundão, unida agora à Ilha do Governador.

Ao longe, por entre os morros com séculos de histórias para contar, é visível a Igreja de Nossa Senhora da Penha. Sinais de modernidade, a ponte que liga Rio a Niterói e os inúmeros arranha-céus.

Não consigo acompanhar, apesar de ter o olhar posto no céu, que continua cinzento, os aviões que aterram no aeroporto do Galeão. Em São Paulo pareciam-me estar parados, aqui desaparecem do meu campo de visão num ápice.

Eis-nos, minutos depois, na avenida perimetral, que por meandros vários nos conduz à rodoviária central da cidade.

 

PROFECIAS NA CIDADE

Estou de regresso ao Rio de Janeiro oito anos depois da minha primeira visita. A cidade parece-me mais degradada, mais caótica. Os alertas feitos poemas do Profeta Gentileza permanecem nos postes de cimento que sustentam o viaduto que acompanha em toda a extensão o porto, ao longo da Avenida Rodrigues Alves.

«– Gentileza gera gentileza e amor», alerta o Profeta, excêntrica e muito querida personagem carioca, já falecida, em letras azuis limitadas por linhas amarelas e azuis, as cores do Brasil. Palavras maiúsculas e sem pontuação, sempre com a bandeira brasileira ao canto superior direito e ao fim de cada frase. Eis uma das passagens: “Meus filhos. Todos vós sois inteligentes. Nossa cabeça, nosso mestre. O mundo é uma escola, ensina o que é bom do que não presta. Pediu Jesus, separai o trigo do joio. Quem não veio para servir não serve para viver. Ferro velho, voltamos ao paraíso de Deus. Pensamento positivo. Boa palavra porta do céu, do mesmo pensamento mal e do diabo por Jesus disse. Profeta gentileza e amor.”

E mais: “Nosso Pai gentileza Criador do Universo e natureza, não vende terra, não cobra para nos alimentar, esta luz do mundo que é nossa vida e de todos os seres viventes. O mundo é de graça. O que vende tudo destrói, os próprios filhos de Deus dos homens pelas leis do Capeta, vem de origem de capital faz o diabo demónio o marginal e os filhos de Deus vivem mal. O capital destrói a mente, cega destrói o amor por Jesus, disse o Profeta Gentileza com amor e paz.”

Na parte inferior dessas colunas, numa mensagem mais terra a terra, a tenda espírita Búzios e Cartas oferece “missão de caridade por apenas cinco reais”.

Aproveitando a fama e imitando o Profeta, alguém deixou uma mensagem contra o a maior festa brasileira: “Carnaval festa da carne nasceu na traição de Jesus. Festa diabólica todos que vão compartilhar com a ajuda de Jesus na TV, peladas do jeito que o diabo dos homens gostam, mas Deus não”. Em jeito de assinatura, uma cruz invertida.

Dizer que “Haloween é festa pagã” ainda vá que não vá; agora falar do Carnaval num tom tão reprobatório, no Brasil, é quase um convite ao linchamento.

 

O SENHOR SALES

No interior da tacanha estação rodoviária a confusão é a mesma de há uma década. A única melhoria visível traduz-se na introdução de computadores, embora o sistema caia com frequência. Sem o querer ouço críticas severas à empresa São Geraldo que em alguns dos seus autocarros utiliza caravelas como logótipo. Será português o dono? Se o for também o é da Contijo, pois ambas estas empresas parecem estar associadas. «– Mas que companhia vagabundazinha», desabafa alguém que aguarda um familiar que viaja num dos veículos que está com um atraso de várias horas sem que ninguém por detrás do balcão sabia dizer quando chegará. Portugueses, também, serão os donos da eficiente empresa citadina BrasLisboa, cujos autocarros cruzam as artérias da cidade com bastante regularidade.

Não tenho a mínima ideia onde vou pernoitar. Até aqui contei com o apoio do turismo local dos locais que visitava, mas agora ter-me-ei de ver com os meus experienciados dotes de andarilho. Nada que me deixe angustiado.

Uma vez que a estada vai ser curta o melhor é colocar a bagagem mais volumosa num cacifo colectivo que no Brasil se designa de guarda volumes. Enquanto trato disso vislumbro entre a multidão apressada dois homens envergando batinas negras. São monges beneditinos. Pergunto-lhes onde se situa o mosteiro e eles respondem-me: «– É muito perto. Não mais do que quinze minutos de táxi».

«– E com quem devo falar? Mauro é seu nome? Então por Mauro perguntarei».

Primeiro, no entanto, há que tratar das necessidades básicas. Decido ficar no hotel mais próximo, que, pelos vistos, é o único nas redondezas. O Hotel da Rodoviária é incaracterístico e pequeno, mas razoavelmente limpo, o que já não é mau. A um canto do lóbi há uma estátua do Santo António enfiada num nicho e regras rigorosas que implicam um “check out” às onze da manhã, como é norma no Brasil. O velho gerente (inicialmente antipático, mas que mais tarde me contará quase toda a sua vida) chama-se Sales. É português, tem mais de setenta anos e continua malandro com as moças, como tenho oportunidade de o comprovar, quando o vejo fazer uns avanços junto de uma das empregadas.

 Joaquim Magalhães de Castro

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