O Nosso Tempo

O suicídio dos deuses – I

Leio com tristeza a notícia abaixo, o que me leva a reflectir mais uma vez sobre o valor da vida, sobre os limites e enganos da Ciência e sobre os falsos postulados de uma filosofia pretensiosa, porque aniquiladora da humanidade intrínseca, essencial, que nos distingue:

“Um cientista nascido na Grã-Bretanha morreu aos 104 anos de idade depois de ter viajado para a Suíça, para terminar a sua vida numa clínica de suicídio assistido.

David Goodall viajou para a clínica da sua casa na Austrália, onde a eutanásia é ilegal.

O Dr. Goodall recebeu uma dose fatal de um medicamento para dormir, na clínica em Liestal, na Suíça, com a 9ª Sinfonia de Beethoven a tocar na sala enquanto morria.

O porta-voz da clínica confirmou que o Dr. Goodall tinha «ido em paz» e foi cercado por um punhado de familiares próximos e amigos durante os momentos finais.

Ontem, o Dr. Goodall deu uma conferência de Imprensa, na véspera da sua morte, para explicar a sua decisão.

«Estou bastante surpreso com a ampla cobertura na Internet sobre o meu caso. Estou muito agradecido pela hospitalidade da Federação Suíça e pela habilidade que temos aqui para chegar ao fim com dignidade», disse aos repórteres.

«Estou feliz por ter esta oportunidade, apesar de que preferiria tê-la na Austrália, e lamento muito que a Austrália esteja atrás da Suíça neste movimento e que a maioria dos países esteja de facto atrás da Suíça».

«Alguém na minha idade, ou mesmo um pouco mais novo, tem de ser livre para escolher a sua morte, no momento mais apropriado».

«Eu não quero mais continuar a vida. Estou feliz por ter a chance amanhã de acabar com isso e agradeço a ajuda da profissão médica aqui, em tornar isso possível».

Ele passou algum tempo nos seus últimos dias no Jardim Botânico da Universidade de Basel, onde gravou imagens para um próximo documentário sobre a decisão de acabar com a vida.

O Dr. Goodall pôde voar para a Suíça em Business Class após a Exit International, um grupo que faz campanha a favor da morte assistida, ter arrecadado mais de dez mil libras com recurso à subscrição pública.

Acredita-se que o custo da eutanásia na clínica administrada pelo Life Cycle seja de cerca de oito mil libras”.

O Dr. Goodall morreu a ouvir Beethoven. Saiu da vida a ouvir um dos compositores que, pela beleza inultrapassável das suas composições, como que grita incessantemente pelo infinito.

O Dr. Goodall terá, nos seus derradeiros momentos, respondido a esse grito? Ou entregou-se simplesmente ao ansiado alívio de um fim de caminhada?

 

A CORTINA DO TEATRO DESCEU

Sim, desceu definitivamente a cortina sobre esta morte-espectáculo que se quis discreta, mas que pelos vistos não o foi: teve cobertura ampla na Internet e, como apoteose final, o velho cientista quis explicar a sua decisão, numa conversa pública alargada aos Meios de Comunicação Social.

Foi o seu gesto último e definitivo, a favor da eutanásia. Foi o seu derradeiro acto de proselitismo, a favor de uma causa que pensou ser boa, acompanhado de um documentário filmado sobre as suas derradeiras reflexões nessa matéria. Que suscita à sociedade em geral, tópico híper-sensível que é, as maiores reservas éticas. Para que às verdades impostas e não criticadas do antigamente não se sucedam anti-verdades “novas”, do mesmo tipo, importa debatê-las. Para, desde logo, denunciar o quê?

 

AS FALSAS PROMESSAS DA CIÊNCIA

A partir daqui, o que dizer? Primeiro, parece que há que seguir o discurso hoje politicamente correcto. Que longe vai o tempo das verdades impostas. Das teologias oficiais. Do fogo da Inquisição, para quem não se curvasse aos dogmas dos iluminados, imbuídos do poder de quebrar as dissidências, sempre perigosas.

As dissidências que se temia não mexessem apenas com as verdades íntimas de cada consciência, ao modo de cada um olhar para o Criador e para as Suas criaturas, mas para a ordem social e política, garantida pelo Príncipe.

Que o sistema da verdade única finou-se, pois, e que cada um tem direito a decidir da sua vida – e da sua morte – como muito bem entende.

Desde logo, para mim, é trágica a ciência que, em vez de se abrir ao Tudo, ao Todo, através da sua humi, se transforma ela própria numa outra espécie de religião, com os seus próprios dogmas, com a sua própria intransigência, ainda por cima com pseudo-verdades ou meias verdades que conduzem ao desespero do homem.

 

A MINHA RECUSA

 

Recuso uma ciência que mata em mim a esperança. Porque não é humilde no reconhecimento das suas fronteiras. E não nos adverte dos nossos limites… e, por via deles, dos seus e nossos erros.

Recuso uma ciência que devora os seus discípulos, levando-os ao fanatismo das verdades reveladas, tornando-os mais vegetais do que as plantas, sob o “diktat” de um certo fatalismo biológico.

Perdoe-se-me o que pode parecer desrespeito para com a memória de um homem – o centenário cientista australiano – que parece ter-se conformado com a sua condição de mero produto biológico e que, tão imbuído do cepticismo científico, se esqueceu de que também era deus e que podia gritar para o céu.

Repito provocadoramente a asserção acima: que também era deus e que podia gritar para o céu.

Esse é o verdadeiro repto. O do ser criado à imagem e semelhança de Quem o criou e de por causa desse selo original que nos marca ainda mesmo antes de nascermos nos abre a porta para um reino que não é deste mundo. Fuga ou libertação? Quem, de entre os cépticos, pode responder com absoluta certeza?

Pois à questão do “provem a vossa Fé”, pode sempre responder-se com questão gémea, “provem a vossa descrença”… E o jogo fica tecnicamente empatado, e só se sai do impasse pelos sinais visíveis de quem crê, provando pela sua vida que Crer vale a pena.

Sim, a notícia desta morte anunciada deixou-me triste. Triste naturalmente pelo próprio desaparecimento físico dum ser humano, e triste pela sua deliberada escolha.

Tive um amigo, já falecido, que filosofando comigo pelas ruas desta nossa cidade, sobre a própria ideia da morte, dizia serenamente que esta é afinal só um sono de que não se desperta.

Não concordei, delicadamente e disse, no tom quase fraterno da nossa deambulação, que o problema não era a morte, mas toda a vida que se viveu até chegar ao momento decisivo.

A morte só seria um sono sem regresso, argumentei, se não houvesse em nós, persistente, obcecante, essa voz íntima clamando pelo sentido de tudo.

Carlos Frota 

Universidade de São José

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