A capela escondida de Kyichu
Em Paro, Cacela e Cabral enfrentaram novas dificuldades. O homem que os acompanhava roubou-lhes tudo o que levavam para sustento e alojou-os numa casa muito escura onde ficaram numa situação de quase cativeiro. Informa-nos a “Relação” que era “uma casa onde ao meio dia nos não víamos, e mais parecia cárcere que outra coisa”. Ao tentar sair desse local foram impedidos por familiares do tal homem, que correram a chamá-lo. E este impediu-os pela força: “Era notável a paixão com que este homem veio a nos impedir e querer outra vez à força meter em casa, valendo-se das armas e de tudo o que pôde contra nós”. Com toda a paciência e a ajuda de vizinhos, lá conseguiram desembaraçar-se do personagem e foram albergados essa noite em casa de “um bom velho que por amor de Deus Nosso Senhor nos fez gasalhado”.
No dia seguinte, um lama local, previamente contactado por João Cabral, ofereceu-lhes guarida, tendo para tal mandado homens e cavalos para os buscar. Contudo, quando os padres chegaram a sua casa, que ficava bastante longe ainda, já ele mudara de ideias, pois temia “brigar com o homem que nos roubara se em casa nos recolhesse”, embora, no final, tivesse aquiescido. Nesse capítulo, as dificuldades continuaram, privando-se o padre Cacela de entrar em detalhes, embora lembrando-nos algumas mais particularidades daquelas paragens. Diz ele que aquela era uma terra “onde não há quem acuda a nada, sendo cada um destes homens em casa senhor absoluto sem haver fora dela quem lhe peça razão do que fizeram”. Por fim, Cacela e Cabral acabariam por chegar à fala com “o lama principal que aqui tem o Rei”, que ouvira falar dos padecimentos sofridos pelos portugueses. Disse-lhes que lhes daria guarida e protecção aconselhando-os a esperar em sua casa o monarca, pois este chegaria dentro de um mês. Mas qual quê! Também ele os estava a empatar. Decidiram, por isso, retomar o caminho sozinhos, dispostos a acatar as dificuldades que doravante pudessem surgir.
Escreve Cacela: “confiando em Nosso Senhor nos guiaria e guardaria, pois tendo feito as diligências possíveis não víamos outro meio para passarmos adiante”. Face a tão decidida resolução, o lama pediu-lhe que lhe dessem algum tempo para preparar salvos-condutos, certamente temendo que o monarca o viesse a castigar, como perspicazmente nota Cacela, se aquele “se lá nos visse sem ir como convinha, ou se no caminho nos sucedesse alguma coisa o castigaria gravemente”. Assim, Cacela e Cabral aguardaram um dia mais e a 5 de Abril deixaram Pargão munidos de salvo-conduto, “gente e cavalos para o restante do caminho” e ainda a “companhia do primeiro lama”.
No já longínquo século VII, “com o intuito de subjugar uma gigantesca entidade demoníaca que apoquentava toda a região dos Himalaias”, o rei tibetano Songtsen Gampo ordenou a construção de 108 eremitérios, entre os quais Kyichu Lhakhang, o templo que Sangay faz questão que visitemos. Por sinal, é um dos mais antigos do Butão e um dos três sobreviventes da empreitada levada a cabo pelo rei Gampo. O País abriga também o segundo templo, estando o terceiro – o meu já velho conhecido Jokhang – assente nas desgastadas lages da velha Lhasa, principal local de peregrinação de todo o Tibete.
Recorde-se que 108 é um número místico para os budistas. Com um sorriso estampado no rosto, quase vitorioso, Sangay revela-nos a razão pela qual nos leva ali. «A igreja que Shabdrung prometeu aos jesuítas funcionou neste templo», assegura. Embora não haja dado histórico que comprove semelhante afirmação, a promessa feita por Shabdrung é um facto. Só nos resta fazer uma visita e tentar encontrar algum vestígio identificativo. Mas há um problema. Não estamos autorizados a registar imagens, como é norma em todos os templos budistas de tradição tibetana. Resta-nos, pois, fazê-lo à socapa. Sangay adivinha as nossas intenções, mas mostra vista grossa. O seu olhar diz-nos: “façam-no, mas discretamente”. É compincha. Dessa nossa actividade “ilegal”, que demora o tempo de percorrer uma série de divisórias escuras com altares, estátuas de Buda e seus avatares, paus de incenso, devotos e monges guardiães, quinze a vinte minutos, quando muito, dois pormenores chamam-me a atenção. O primeiro, numa das salas laterais, um altar de madeira negra contém elementos de decoração evocativos dos altares das igrejas católicas. Refiro-me aos motivos florais e, sobretudo, a uma figura humana esculpida semelhante aos anjos que suportam partes dos altares e que em Vure, na ilha indonésia das Flores, designam de “anjo-meja”. Acresce a isso duas magníficas presas de elefante como principal elemento decorativo. Os portugueses ofereciam-nas aos rajás com quem se aliavam, empossando-os com o título de Dom e emprestando-lhes apelidos que ainda hoje perduram. Terá funcionado aqui a dita igreja, ou melhor dizendo, capela?
Na parede de uma outra divisória resguardada está uma pintura de Shabdrung acompanhado por dois intrigantes barbudos com vestes monásticas e feições vagamente caucasianas. Será uma representação dos nossos padres? É muito natural que Cacela e Cabral, como bons jesuítas, vestissem à butanesa durante a sua permanência. Custa a acreditar, até pelo impacto que a visita teve, não terem sido, uma vez que fosse, imortalizados numa das milhares de pinturas existentes nos mosteiros do reino. É claro que, neste caso, entramos obrigatoriamente num domínio puramente especulativo. Sabe-se ao certo que Shabdrung passou a administrar o templo em 1644, o que pressupõe que o local pudesse ter estado desocupado, reforçando assim a hipótese de terem sido os jesuítas autorizados a usar uma das divisórias como capela, à semelhança do que aconteceu em Chagri.
Joaquim Magalhães de Castro