O Nosso Tempo

O meu salvo-conduto

A nossa convidada desse fim de tarde, realmente apenas a amiga de uma familiar que esperávamos, desde o princípio da conversa que tentava adivinhar-nos a origem e a ocupação.

Donde seríamos?, lia-se-lhe a pergunta no olhar. Não resistiu muito tempo e perguntou-o directamente, depois de alguma hesitação. Lá lho disse. E a reacção foi imediata, em forma de reconhecimento de que entráramos definitivamente no seu universo, no seu mundo familiar, o das coisas (suas) conhecidas.

«Ah, afinal são também emigrantes!», exclamou.

«Sim – respondi – também somos emigrantes».

E passámos a conversar sobre o nosso mundo comum, o de estar lá fora e cá dentro ao mesmo tempo.

 

País de corpo inteiro

Chegam anualmente, no Verão, de automóvel, com matrículas estrangeiras, ou cada vez mais de avião, porque para muitos passaram já os anos da juventude para continuarem agora a suportar, na velhice, as longas horas na estrada. As noites insones, os olhos a fecharem-se perigosamente, a cabeça quase rendida de cansaço, a conduzirem pelos caminhos da Europa, por exemplo, com pressa de chegar a casa, muitas centenas, mesmo milhares de quilómetros depois.

Enchem os cafés e as praças das suas aldeias e vilas, reencontrando familiares e amigos, e com eles falando na linguagem mesclada de quem foi esquecendo muito do idioma materno. E nunca dominou realmente a língua do país de adopção. Na sua conversa, de repente surgem palavras ou expressões que apontam para outros mundos, outras gentes, outros modos de ir cumprindo a vida.

Alguns dos que nunca saíram interpretam tais desvios como snobismo de quem quer impressionar, ou ainda a ignorância de quem se ficou pelas primeiras letras. Mas muitos – e cada vez mais – vêem, em tais digressões repentinas por língua estranha, bordões que ampararam nos caminhos difíceis da adaptação, ou pontes construídas por quem teve que atravessar, nas suas vidas, rios insuspeitos de águas nem sempre tranquilas.

Constituem uma comunidade à parte, de fronteiras invisíveis, composta por quem compartilha a dura realidade do quotidiano lá fora, ou está disposto, de coração aberto, a aceitá-los como são – como é toda a gente, afinal.

Sóbrios ou exuberantes; dispostos a exibir, na terra natal, a riqueza que têm ou que não têm e fingem ter; discretos ou espalhafatosos, no viver economizando, ou no esbanjar vaidoso, de quem quer provar sucesso aos vizinhos. Mas este não é o retrato completo. É mesmo quase só o retrato-caricatura das primeiras gerações. E por isso retrato simplista e injusto. De que peço antecipadas desculpas, se tal minimiza tantos dos que não se reconhecem no cliché, eivado de preconceitos.

Porque os retratos nunca integraram a contabilidade de todas as dores do desenraizamento, de todas as penas da discriminação ostensiva ou subtil lá fora, por mais diverso que seja o discurso politicamente correcto, de todos os desejos de “bater com a porta”, porque a vida não consente as decisões a quente… O futuro dos filhos, o pagar a casa, o amealhar para a velhice…

Dos mais jovens, o retrato é obviamente outro. Os jovens, esses saltaram, como puderam, as barreiras do “ser estrangeiro”, e de tentar ser como os outros, sem o estigma das periferias, as culturais e as outras.

E cada vez mais, nas empresas, nas administrações públicas, nas universidades, nos municípios, nos partidos políticos, vão subindo as escadas da competência, do prestígio, da influência – do poder.

 

Pátria de muitas diferenças

O Portugal europeu, ou só europeu, com que muitos puristas sonharam e talvez ainda sonhem, foi sempre para mim o Portugal irreal, abstracto, feito dos clichés da civilização europeia, precisamente porque a Europa nunca foi só europeia.

Esse era e é o retrato incompleto de Portugal. Porque sempre faltou a essa imagem de país “regressado às origens”, como cantavam os prosélitos da ideologia europeísta pura e dura, que os euro-federalistas sustentaram, logo a seguir ao 25 de Abril – a esse retrato duplamente faltava, escrevia eu, um duplo legado. O legado ultramarino e o legado da diáspora.

Quem andou quinhentos anos a deambular pelo mundo crioulizou-se, miscigenizou-se de tantas formas (que não apenas a da árvore genealógica) que a pureza europeia passou a ser um mito. Uma abstracção. Uma mentira. Um expediente político.

Porque quem andou a tentar construir países, por um lado; ou, por outro, adoptou pátrias diversas, sem forçosamente renegar a sua, moldou o país que somos das cores e dos sabores de todas as Américas e Brasis e Argentinas, Angolas, Moçambiques, Timores, para onde os caminhos da vida, individual e colectivamente, nos conduziram.

País mestiço lhe chamaram, os mesmos talvez que rebaptizaram de Dia das Raças o duvidoso, o equívoco, Dia da Raça. E juntaram, na mesma designação formal, Luís Vaz de Camões e as Comunidades Portuguesas da Diáspora, selando definitivamente o destino do Poeta ao deambular português pelo mundo. Não são “Os Lusíadas”, afinal, o Cântico de todas as partidas? Muito mais do que o relatório poético das chegadas?

Recomendo vivamente, a este respeito, a leitura da alocução do professor Sobrinho Simões, no último 10 de Junho, onde o cientista faz um magnífico elogio do direito à diferença, às diferenças.

 

A concluir…

O tema que escolhi para esta crónica do Verão português nada tem de original, nem pretende ser. Também não é puro exercício literário. Antes o vejo como testemunho de vida e homenagem a quem a merece, da parte de quem, como cada um dos meus concidadãos da diáspora, não é, há quarenta anos, senão como todos eles – um emigrante.

Fui emigrante como qualquer emigrante, quando há mais de quatro décadas, em desespero da terra perdida, rumei à África ex-francesa para explorar ainda as possibilidades do meu sonho africano.

Fui, no coração que não na lei, também um emigrante como cônsul em França, não permitindo que o estatuto consular fosse obstáculo à comunhão sincera com a parte da nossa diáspora que eu servia.

E sou imigrante na minha aldeia beirã, porque com as raízes embora noutros solos “que o império fez”, como diria o poeta, aqui venho reaprender, na solidariedade simples dos pobres, os ritos e os ritmos antigos, da comunhão e da partilha.

Carlos Frota 

Universidade de São José

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