O Nosso Tempo

Fátima, elites e simplicidade

O Centenário das Aparições de Nossa Senhora em Fátima tem constituído pretexto a que múltiplos testemunhos sejam prestados sobre aqueles “acontecimentos extraordinários” da Cova da Iria, por parte de personalidades que, por via de regra, não se exprimem, ou só raramente, sobre a dimensão religiosa do nosso tempo. Dimensão que os perturba, mas que preferem ignorar, desmerecendo-a, em vez de a encarar de frente. E aqui há que distinguir a “elite” e… os outros.

A “elite” são aqueles que têm voz, isto é, os que têm acesso aos Órgãos de Comunicação Social. Esses normalmente sentem-se superiores à pieguice, à infantilidade, à desrazoabilidade da narrativa dos pastorinhos de Fátima, instalados que estão nas “certezas” da sua intelectualidade, alimentada pelo cepticismo ambiente. Cepticismo que premeia a cultura da dúvida, mas mesmo mais: a da pura e simples recusa, baseada no relativismo dos valores e na pretensa esterilidade da procura espiritual – em nome de uma razão superior que tudo isso condena.

Claro que é legítimo não acreditar. Mas não acreditar ABSOLUTAMENTE, numa descrença total porque sem dúvidas, não será uma espécie de fé… ao contrário?

Ser inteligente para eles não é só duvidar. É recusar. Pelo que ser culto acaba por se traduzir no atafulhar das mentes por teorias – e não abrir caminho à liberdade indagadora do espírito. Fechando-a ao que pode existir para além dos livros, para além das exposições, dos concertos, das conferências… Do que possa existir, enfim, para além do conforto da vida urbana, previsível porque ordenada, nas suas rotinas sociais e também culturais.

A elite lida, sabedora, encerra-se pois na geografia apertada dos seus hábitos, preconceitos e convenções. Por isso a sua existência, sem talvez se darem conta, é tida condicionada por um nihilismo redutor – espécie de suicídio metafísico consentido, mas desconhecedor de todas as avenidas que há para além da vida.

Se a vaidade é já prémio e a fama é efémera – ambas com atestado de óbito pré-datado – tal não lhes importa. Porque, pelo menos isso, está garantido.

Basta-lhes a memória depositada nos livros, mesmo se estes ficarem esquecidos na poeira das bibliotecas. E os seus nomes de autores se tornarem cada vez mais ilegíveis, com o passar do tempo.

Como os políticos, já cá não estarão para perceber, quando os seus nomes desaparecerem das placas de ruas ou praças públicas, quanto custa o esquecimento, essa outra face da ingratidão.

A título preventivo, recomenda-se-lhes a leitura frequente do Eclesiastes.

 

Uma geografia a evitar

Para todos eles, Fátima é um enclave estranho, num país homogeneizado pela indiferença e esmagado pelas labutas do dia a dia.

Claro que a invasão do Santuário por um milhão de pessoas, empunhando velas na noite escura, perturba um pouco, mas Fátima continua a ser a geografia a evitar. Só perceptível pela televisão, com gente inculta a rezar ou a cantar (estranhas rezas e estranhos cantos), em torno de uma imagem esculpida em madeira e adornada de flores. Que grotesco, que primitivo! É o regresso aos totens! – poderão dizer ou pensar.

Mas se, em suas casas, olharem em redor, na sala onde se sentam habitualmente, e contemplarem pela milionésima vez as fotografias de entes queridos, não percebem que a imagem da Virgem de Fátima é tão só a fotografia gigante desse outro Ente Querido, a que os crentes abriram, livremente, a intimidade das suas vidas e das suas famílias.

 

A fila exótica dos devotos

Mas desse grupo dos privilegiados muitos escapam e vão engrossar a fila “exótica” dos devotos.

Também leram muito, também viajaram por paragens distantes, também compararam civilizações e culturas, filosofias e tradições. Mas deixaram a porta aberta dos seus espíritos à grande aventura a que os convida, nos convida, a Senhora de Fátima. A aventura de uma grande viagem dentro de cada um, para aí descobrirem a profunda filiação própria de quem é só criatura, e a saudade permanente do regresso à pátria originária.

Esses são naturalmente os que não se esquecem da bússola quando viajam, nem o relógio. Bússola para confirmar o Norte. Relógio para comprovar a inexorabilidade do tempo que passa. E a margem cada vez mais curta do tempo que resta.

Cem desses devotos deram testemunho brevíssimo em curtos vídeos que estão arquivados e disponíveis no “website” do Santuário. São testemunhos de vida, de emoção, de espiritualidade, da parte de gente conhecida do mundo português das artes e do espectáculo, da vida académica e do jornalismo, da liderança política ou da vida religiosa consagrada.

Testemunhos que nos dão a medida dessa comum humanidade que a todos nos liga, feita da fome e da sede de infinito. E, como dizia alguém, da imensa vontade de nos acolhermos ao colo gigantesco onde todos cabem, o imenso colo da “Senhora mais brilhante do que o Sol”.

E, com os seus testemunhos, essas pessoas conhecidas abrem um pouco a janela das suas vidas, e deixam entrever de que energias se socorrem para sustentarem o heroísmo do quotidiano. Para saltarem os obstáculos, quando a vida não é só estrada lisa, de solo asfaltado.

De que escadas se servem para poderem tocar as estrelas, do fundo dos precipícios imprevisíveis, onde os conduzem as feridas que laceram, os lutos que esmagam – e todas as outras perdas.

 

Pensar e sentir Fátima

Claro que, para além da espiritualidade individual ou comunitária, Fátima insere-se também nos registos da Cultura e da História. E de ambas se falou no ciclo de conferências sobre o centenário, no Centro de Congressos Paulo VI.

Confesso que não dei a atenção devida a tal iniciativa, com a belíssima (traiçoeira?) auto-justificação de que o arquivo digital do Santuário tem esses vídeos à “minha” disposição, para quando os quiser ver.

Até porque, sinceramente, a minha “medida” das celebrações do 12 e 13 de Maio, como a de milhares de católicos, situava-se noutros planos: a canonização dos pastorinhos Francisco e Jacinta, duas luzes permanentemente abertas nesse altar do mundo.

E a presença do Papa Francisco. Esse homem admirável que em silêncio nos convida a imitá-lo, porque nos reenvia imediatamente ao Modelo original. Ele não é Ele, mas sendo como é, mostra-nos o caminho.

Sem exagero literário, três luzes tivemos no altar do mundo: duas apontando já o país das estrelas. E a outra iluminando-nos, como pastor, os caminhos pedregosos da terra.

Carlos Frota 

Universidade de São José

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