A Quaresma e o telemóvel
O título desta crónica é algo provocador, aceito, e é-o intencionalmente, porque evoca duas realidades do mundo de hoje, quase nos antípodas uma da outra. O tempo cíclico da interiorização e o tempo contínuo da exteriorização e da alienação interior.
O tempo do cristão consigo próprio. O tempo onde se desfizeram as barreiras da interioridade, o ruído substitui a voz – e a voz nunca é a de oração.
Essas duas realidades, aqui postas em confronto, não são pois senão os símbolos contrastantes de duas atitudes de vida, em torno do tema central desta crónica: o sentido.
Se o título contextualiza o assunto no tempo litúrgico que se está a viver, nas comunidades cristãs de todo o mundo, a questão do sentido, em si mesma, é temporalmente mais ampla do que a Quaresma – porque abraça o tempo todo.
É de SENTIDO, repito, que me proponho “falar”. Na acepção de que “o homem é um ser em busca permanente de sentido”.
E integro-o na Quaresma por razões contraditórias. Porque a Quaresma é o tempo em que, para o senso comum, mais se aprofunda o “absurdo” da caminhada de Jesus para a Cruz, a quase “falta de sentido” da Sua vida (humanamente falando) e da Sua caminhada para o Calvário. Enquanto para os cristãos se vai revelando, progressivamente, pelo contrário, o sentido da Sua dádiva total. E o sentido da nossa própria vida que o Bom Pastor não quer perder. Nenhuma vida, como o ilustra na parábola da ovelha transviada.
Gosto particularmente, repito, da afirmação “o homem é um ser em busca de sentido” que séculos de filosofia e milénios de religião (religiões…) reiteraram, transformando-a na questão central da existência humana.
E que, na sua forma interrogativa, encerra o famoso, o impertinente, o invasor “PORQUÊ?”, que tudo abrange, a que nada escapa e que tem as exactas dimensões da nossa curiosidade. Isto é, não tem limites.
VIVER EM PILOTO AUTOMÁTICO
Talvez para nosso bem, muitíssimo do que fazemos no nosso quotidiano repete-se, e o que se repete passa a ser vivido em “piloto automático”, ou com o sonambulismo de quem parece acordado, mas de facto está a dormir.
Alguma dose de sonambulismo protege-nos, aliás, do que para muitos não passa do fardo existencial do dia a dia. Beber um copo de água ou levar o garfo à boca, durante a refeição, não suscitam grandes interrogações filosóficas, sob pena de estarmos a agravar o peso, por vezes insuportável, do quotidiano.
Mas o fardo do quotidiano é acentuado, paradoxalmente, pelo modo como construímos a civilização urbana que hoje se tornou universal. E que era suposto tornar-nos a vida melhor e a felicidade mais próxima, logo ao voltar da esquina. Estávamos enganados!
Vivemos a contra-ciclo e construímos sociedades que vivem a contra-ciclo. Isto é, quebrámos o relógio biológico para sermos mais eficazes, mais produtivos, mais competitivos, mais mais mais…
O nascer do dia e o pôr do Sol deixaram, para milhões de pessoas, de ser referências naturais a guiá-las, segundo um ritmo que o corpo e o espírito exigem, para se tornarem, como tanta coisa, meras imagens virtuais.
Milhões de pessoas, de facto, acordam, em todo o mundo, muito antes do nascer do Sol para, em multidão, cumprirem a transumância quotidiana das periferias para os centros das grandes metrópoles, em transportes pejados de gente.
Não é incomum ver-se, nessas circunstâncias, pessoas de todas as idades que, na curta (e muitas vezes longa) viagem para o local de trabalho e regresso, adormecem profundamente, completando entre estranhos o tempo do necessário repouso, num quadro de nenhuma privacidade e silêncio que são – privacidade e silêncio – pecados mortais nas cidades que nunca dormem.
Cidades que não dormem, cidades que não se calam, cidades iluminadas pela eterna luz do néon – e que têm sempre algo a oferecer, para neutralizar a fome e sede de sentido, com os sucedâneos de vária ordem, todos com alguma dose de anestésico no seu interior.
O supermercado substituiu a Igreja, a ida às compras substituiu a ida à Missa, o viajar para longas distâncias substituiu os passeios na sua terra, ao sabor não tanto de preferência pessoais, mas das campanhas publicitárias do turismo de massas. O ir ao ginásio substituiu o ir passear a pé, pelas ruas da nossa aldeia, porque nas cidades as ruas são para os carros e se aldeias conhecemos, muitas vezes, é só pela televisão.
Corro o risco de parecer saudosista, adepto de um outro tempo, mas não sou. O que não me dispensa de exercer o meu sentido crítico sobre muitos aspectos do tempo presente.
Assim, se o actual modelo de civilização e de sociedade nos quer transformar em “robots”, passivos consumidores de todos os seus “gadgets”, durante vinte e quatro horas por dia, felizmente temos ainda o direito soberano de dizer “NÃO!”.
De dizer não à omnipresença, ao fatalismo do lado comercial da vida, onde tudo se compra e se vende, onde tudo se troca, se transforma, se deita para o lixo, para se adquirir o último modelo. Onde hospitais e médicos têm clientes, e não doentes. Onde estabelecimentos de educação têm igualmente clientes e não estudantes, numa manifestação da comercialização de tudo o que só pela espiritualidade e pela cultura se vence.
É essa ditadura do transitório, do descartável, que passa das coisas materiais às imateriais, dos objectos aos sentimentos, das coisas às pessoas.
E hoje é mais fácil dizer não do que em épocas não tão distantes. Pela diversidade das ofertas culturais, via Internet, pela informação instantânea e plural pela mesma via, etc. etc.
E são simples os exemplos desse direito soberano de dizer “NÃO!”: como o neutralizar do telemóvel, o apagar a televisão, o fechar o rádio, o desligar o computador.
O HOMEM E O SILÊNCIO
Fecho, desligo, neutralizo… e estou comigo mesmo.
Para muitos de nós o silêncio assim criado é aterrador. Porque põe-nos em confronto connosco mesmos, com a nossa imagem reproduzida no espelho, perante as encruzilhadas da vida e o modo como as fomos gerindo.
Mas é no silêncio que se adquire distância e se ganha perspectiva . E é no silêncio que se pressente Deus.
Desligo o telemóvel. Porque é Quaresma. E prefiro a Bíblia, como aconselha o Papa Francisco.
Carlos Frota
Universidade de São José