O Nosso Tempo

Uma agenda para o mundo

Pode-se olhar para o Chefe da Igreja Católica com o olhar de quem, não sendo cristão, vê no Papa tão só o líder espiritual da primeira religião do mundo, no número de crentes, é verdade, mas sem lhe atribuir importância de maior.

Esses estão errados num “pormenor”: é que as mensagens do Pontífice têm mesmo importância, porque mexem com pessoas, comunidades, situações, através do mundo.

A intervenção do Vaticano no processo de diálogo político entre Nicolas Maduro e a oposição venezuelana é prova disso. Como o é a paz na Colômbia, irreversível já, aconteça o que acontecer depois do malogrado referendo.

Como aconteceu no passado e acontecerá no futuro, reservado está à Igreja o papel da mediação discreta em conflitos onde falham os canais diplomáticos tradicionais, porque estes não sabem como gerar a confiança prévia indispensável a que opositores iniciem o diálogo conducente à paz.

Pois essa grande mediadora da paz detém a vantagem comparativa indiscutível de não ter poder temporal, nem ter por isso estratégias de ocupação de territórios ou outras formas quaisquer de domínio. Já o teve no passado e deu péssimo resultado!

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Ninguém segue a agenda semanal do Papa Francisco por mera curiosidade ou voyeurismo, como se diz hoje na linguagem duvidosa de outras ciências. Ou se segue, é-se confrontado amiúde com a necessidade de se deter para interiorizar a força das mensagens que o Santo Padre transmite aos seus mais diversos destinatários.

Quando profere ou lê as suas intervenções, estas são sempre densas e de óbvias consequências práticas. Falando com chefes de Estado e outros dirigentes políticos mundiais que o visitam, ou visita, não deixa o Papa de lhes transmitir muito do que observa no mundo.

E aí estarão as suas preocupações quanto à violência de conflitos sem fim à vista, procurando motivar os seus interlocutores para as obrigações que têm que assumir, como responsáveis das nações, na busca incessante de soluções políticas para os diferendos.

A condenação sem equívoco dos ataques aéreos a Aleppo é uma prova insofismável sobre de que lado está o Santo Padre no conflito sírio: ao lado da população civil inocente, de todos os lados, sem olhar a religião ou etnia.

E mencionando o factor religioso, tão presente hoje e com tão negativas conotações na agenda global, no que diz respeito aos chefes espirituais das outras grandes religiões do mundo, o Santo Padre tem criado laços de forte proximidade, que como que criou já uma frente comum que retirou legitimidade à ideologia do terror “em nome de Deus”. Aí, o extremismo já foi derrotado.

Aliás, vem-me à memória o sem número de visitas que o Papa tem feito a mesquitas, sinagogas, templos protestantes, outros lugares de culto, para sublinhar esse sentido de comunhão que tem de ser o traço caracterizador da nossa comum humanidade.

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Já quanto ao seu diálogo com o interior da Igreja, a bispos ou sacerdotes vindos de longe ou de perto, a todos o Papa recorda a força de uma Igreja despojada do que não é essencial, com pastores sinceros, entregues às suas comunidades, e não seguidores de uma qualquer carreira eclesiástica, conceito que, com o actual Pontífice, poderá estar a entrar em desuso…

Que os ambiciosos de uma certa forma de poder eclesiástico tomem nota!

Aos diversos movimentos de leigos e aos profissionais católicos dos diferentes domínios da educação, da ciência, da Comunicação Social, Francisco recorda sempre um empenhamento humano no que cada um faz que não se restringe à frieza da mera competência técnica, mas à observância da verdade. E não esquecendo nunca o que há em cada vocação de exigência no plano da solidariedade humana.

 

Que sociedade?

As iniciativas mais recentes do Santo Padre, quer as inscritas no Ano Jubilar da Misericórdia, quer na intensificação do diálogo ecuménico – de que o encontro de Lund foi a manifestação mais expressiva – tiveram nesta última semana um outro desenvolvimento muito interessante, com a grande reunião, no Vaticano, entre o Papa Francisco e mais de mil detidos, provenientes de cadeias de muitos países.

Uma reunião com presos? Estranho encontro esse, num rápido olhar! E, no entanto, tão lógico e tão coerente com a visão do mundo conforme os Evangelhos.

Lembrando-me do jurista que também fui, a minha reflexão aqui toma dois caminhos diferentes, mas complementares. O da realidade do crime e da experiência traumatizante (mas quiçá regeneradora) da prisão. E o de uma sociedade que tem que saber acolher quem cai mas se levanta, para prosseguir o caminho.

Mencionarei primeiro a realidade carcerária, um pouco amparado pelas experiências que fui tendo, durante mais de quatro décadas, como delegado do Ministério Público, como advogado e, finalmente, como diplomata, no contexto das minhas obrigações de assistência consular a reclusos.

Sempre que visitei cadeias e pude falar com detidos, regressei de tais encontros com as mesmas insistentes perguntas que me fui fazendo quando, nos bancos da Faculdade, abordava em teoria a realidade jurídico-criminal e a privação da liberdade que lhe está conexa. Mormente a dupla função do encarceramento, a um tempo punitivo e de reintegração social.

O grande problema social da privação de liberdade e prisão de condenados é o de os estabelecimentos prisionais poderem perpetuar a prática da delinquência, escolas de vícios que muitas vezes são – e não propriamente escolas de virtudes.

Este é um enorme desafio, para Governos e responsáveis políticos, em todo o mundo. Sobretudo numa época em que a variedade dos pequenos delitos vive paredes meias com a grande criminalidade, em cadeias desprovidas das condições mínimas para a recuperação dos que desejam fazer desse interregno em suas vidas a preparação para um novo começo.

Para além pois das circunstâncias penosas da detenção, assumida como pagamento à sociedade pelo mal praticado, sofrem os presos com a inserção no microcosmo de cadeias que lhes retardarão a esperança de se converterem em pessoas “novas”, prontas a reiniciar as suas vidas de forma diferente.

O Papa neste encontro veio recordar a dignidade intrínseca de cada pessoa detida, a quem a sociedade continua a condenar, todavia, através do preconceito, mesmo depois de cumprida a pena.

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A segunda reflexão que estaria tentado a fazer, para concluir estas notas, vai no sentido de tentar compor de forma correcta as múltiplas peças do puzzle que é este já tão rico pontificado, e antecipar a visão global de um mundo inspirado por uma outra lógica totalmente diferente do poder, assumido como serviço.

A permanente mensagem do Papa aos principais actores globais, bem espelhada na sua recente intervenção na Assembleia Geral da ONU, aí está para provar a coerência da visão do mundo que a inspira.

O Papa Francisco terá um aliado natural no novo secretário geral da ONU. E do lado da “nova” América que nasceu na terça-feira?

Carlos Frota 

Universidade de São José

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