A ecúmena cristã
Ao ultrapassarem o Equador, penetrando no hemisfério austral e provando que tanto a África meridional como a América do Sul eram habitáveis, os navegadores portugueses vieram revolucionar a forma como era visto o nosso planeta ao longo de toda a Idade Média. Um conceito que conciliava o mito bíblico da Terra plana com a ideia grega de uma Terra redonda, arquitectados muitos séculos antes, respectivamente, por Crates de Malo (cerca de 160 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.).
De acordo com esta síntese, a Terra era plana ao nível da ecúmena habitável e redonda ao nível da astronomia. O planeta era representado graficamente por uma esfera coberta na sua maior parte por água, com quatro pequenas “ilhas” diametralmente opostas. Assim, e no sentido do ponteiro dos relógios, tínhamos: a Oecumene, a Antoeci, a Antipodes e a Perioeci. Afinal, uma representação do globo terrestre que se aproxima bastante da actual.
Dogmas da doutrina cristã, porém, circunscreviam a espécie humana a uma dessas ilhas, negando, como premissa inquestionável, que as outras pudessem ser habitadas. O oceano era o imenso desconhecido, na medida em que separava essas “ilhas” irremediavelmente, tornando o seu acesso impossível. Daí que a pequena ecúmena cristã, que tinha a cidade de Jerusalém como epicentro, “o umbigo” do mundo, parecesse plana. E plana permaneceria por muitos anos. Contudo, a semente que consubstanciava a ideia da existência de novas terras, muito para além de oceanos, estava lançada.
De certa forma, a ancestral teoria de Crates de Malo era bem mais avançada que o mundo sublunar dos sábios medievais, inspirado na teoria de Aristóteles, dos quais se destaca João de Sacrobosco, que no seu “Tratado da Esfera” dava ao cosmos a forma de quatro esferas concêntricas, constituídas pelos quatro elementos e ordenando-se segundo as respectivas gravidades. A Terra surgia como centro do mundo; à sua volta estava a água; à volta da água, o ar; e à volta do ar, o fogo. Cada um destes elementos cercaria a Terra sob a forma de uma camada esférica “à excepção de onde a secura da terra se opõe à humidade da água, a fim de conservar a vida dos seres animados”. O que corresponderia à ecúmena na teoria de Crates de Malo. Só que os horizontes deste eram amplos, se bem que uma amplitude hipotética, enquanto os horizontes que perdurariam ao longo da Idade Média esbarrariam com as atitudes dogmáticas. A porção habitável e cristã afigurava-se a um corpo que boia à superfície do imenso mar, “flutuando como uma maçã num lago”, na metáfora de Buridiano. Ora, o facto negava, à partida, a existência de qualquer outro pedaço de terra habitável. A superfície da Terra deixada a descoberto pelas águas e correspondente à ecúmena cristã permanecia insignificante em relação à imensidade da esfera de água. Desta forma ela podia ser representada plana.
“NASCIMENTO” DAS ANTÍPODAS
A juntar a estes dois esquemas havia ainda um terceiro, bastante divulgado na Idade Média, e que delimitava a esfera em diferentes zonas. Era a teoria atribuída a Parménides (primeira metade do século V a.C.) que dividia a esfera em cinco “praias”: duas geladas, perto dos pólos, por essa razão inabitáveis e, sobre o equador, a zona tórrida, também inóspita e intransponível, separando as zonas temperadas, as únicas susceptíveis de acolher pessoas.
A Teoria das Zonas dava um passo em frente na percepção do planeta. Embora desfalcando, em duas ilhas, a concepção cratesiana. Se, por um lado se avançava – pois admitia-se a existência de humanos fora da ecúmena cristã – por outro, regredia-se, já que de quatro passariam a ser consideradas apenas duas ilhas: a Oecumene e a Antoeci. As “eliminadas”, Antipodes e Perioci, situavam-se precisamente numa zona onde se viria a descobrir o continente americano, nas suas acepções setentrional e meridional. Nascia, apesar de tudo e em definitivo, o conceito de antípodas. Mas haveria ainda muito espírito retrógrado e ideias feitas por ultrapassar.
A Idade Média negou-se a aceitar a ideia das antípodas e da possibilidade de lá existirem seres humanos. Lactâncio chega mesmo a rejeitar a ideia de uma Terra esférica, voltando ao conceito de Terra plana. “Quando se pergunta àqueles que defendem estas opiniões monstruosas como pode acontecer que o que esteja na Terra não caia para o Céu, respondem que é porque os corpos pesados tendem sempre para o meio, como os raios de uma roda, e que os corpos ligeiros, como as nuvens, o fumo, o fogo, se elevam no ar”, queixava-se ele no capítulo III do seu “Instituições Divinas”. E concluía: “Ser-me-ia fácil provar com argumentos imbatíveis que é impossível que o Céu esteja por baixo da Terra. Mas sou obrigado a acabar este livro (..)”.
Já Santo Agostinho não põe em causa Aristóteles e, sem o querer, apoia até a teoria cratesiana, embora ache “absurdo de manter que os homens tenham passado navegando deste para outro lado através do imenso oceano”.
REVOLUÇÃO DOS DESCOBRIMENTOS
“Do século XII ao fim do século XV é-se simultaneamente atraído por dois discursos, na realidade contraditórios, mas que se esforçam por se fazer passar por um único e mesmo discurso coerente: a teoria corográfica de uma ‘Terra-ecúmena’ plana e a teoria cosmográfica de uma ‘Terra-dos-astrónomos’ redonda”, escreve W.G.L Randles no seu livro “Da Terra plana ao Globo terrestre”.
Durante muitos anos confundir-se-ia a Ásia com a Índia, idealizar-se-ia e discutir-se-ia a situação geográfica dos reinos de Preste João e do Cataio, descrever-se-iam e publicar-se-iam viagens imaginárias, quando muito, resumindo a geografia aos mares fechados de Ptolomeu. Pode dizer-se que, depois de Crates, o conceito sobre o planeta regrediu. Até à passagem dos portugueses pelo Equador…
Os Descobrimentos alteraram a ordem do mundo, enriquecendo-o com uma verdadeira revolução informativa. Que recusou ideias feitas, como o da inabitabilidade da zona equatorial, e deu a conhecer à Europa novas civilizações, como a japonesa. O nosso avanço empírico desencadeou uma revolução da náutica astronómica, reflectindo-se isso no aparecimento e aperfeiçoamento não só de instrumentos de observação e medição (astrolábios, quadrantes, balestilhas, tavoletas), mas de toda uma série de Guias Náuticos, Livros da Marinharia, Diários de Navegação e Roteiros.
Pedro Margalho, astrónomo, seria pioneiro na confrontação do saber universitário dos antigos com a experiência dos marinheiros. Abrindo assim caminho para o pensamento do mais conhecido astrónomo do Renascimento: o polaco Nicolau Copérnico. Ele que acaba por matematizar as experiências dos marinheiros ibéricos (sobretudo os portugueses), na sua obra “Das Revoluções do Orbe Celeste”, onde afirma que não há qualquer diferença entre o centro de gravidade da Terra e o seu centro geométrico, solidificando o conceito do globo terráqueo esboçado pelos seus antecessores. Para que se chegasse a essa conclusão de que a Terra forma um só globo com a água, em muito contribuiu a experiência dos homens do mar ibéricos, ao garantirem que a profundidade do mar “não ultrapassava os quinhentos passos, no máximo”, exceptuando alguns abismos. São eles que comprovam o conceito da continuidade dos continentes. A América passaria a ser considerada a continuidade da Ásia, já que, por debaixo de todo o mar, havia terra. Injustamente, Copérnico não faz qualquer referência a eles.
Escrevia Margalho: “Se, com efeito, os cimos das montanhas são por vezes descontínuos e tomam uma forma convexa, as suas bases são contínuas, porque o mundo inteiro não é mais do que uma montanha”. Semelhante pensamento contradizia a ideia ptolemaica dos oceanos fechados.
Outra metáfora interessante é a do francês Jean Fernel, que na sua “Cosmographia” de 1527, dedicada ao rei de Portugal D. João III, escreve: “deve admitir-se que a Terra é como uma espécie de globo de madeira, no qual existem muitas cavidades para receber a água”.
RETOMAR DO MITO CRATESIANO
Voltemos a Pedro Margalho, que recorre ao mito cratesiano para explicar os Descobrimentos: “Pela Divina Providência e para glória do seu nome, os cristãos desvendaram o nosso mundo em comprimento e largura, já que vemos as Ilhas Britânicas e a afastada Tule, antigamente inacessíveis e escondidas da humanidade, visitadas e frequentadas todos os dias e ressoantes de louvores divinos. A oeste, os limites do mundo foram, pela virtude dos Reis de Espanha, afastados em numerosos lugares para além das Ilhas Afortunadas [as Canárias], barcos fizeram a travessia aos nosso Periecos e descobriram ilhas. Para sul, os marinheiros do rei de Portugal, tendo navegado nas suas viagens para além do Capricórnio, atingiram os Antecos”.
Foi graças às obras de experimentalistas, como Duarte Pacheco Pereira, Pedro Nunes, Fernando Oliveira e, sobretudo, D. João de Castro, que, em Portugal, desponta um espaço científico pronto a estudar e a procurar resolver questões aparentemente simples, como a teoria das marés ou a proporção no globo entre a terra e o mar. “Tratado da Esfera” e “Roteiros”, obras de D. João de Castro, constituem, porventura, o ponto mais alto do aspecto científico e filosófico da cultura dos Descobrimentos.
Com o advento do Santo Ofício, a Península Ibérica, pioneira na área científica, mergulharia de novo na idade das trevas. Possibilitando que o conhecimento florescesse nos países protestantes do Norte da Europa. Os efeitos dessa alteração de pólos de conhecimento, ainda hoje se faz sentir.
Quanto ao mérito dos portugueses, o de ter posto o mundo inteiro em comunicação, encerrando em definitivo a Idade dos Mundos Fechados, esse, ninguém lhes pode tirar. Tão pouco perdeu actualidade.
Joaquim Magalhães de Castro