O nosso tempo

Uma voz para além do Bósforo

Quando o Papa entrou na sala do Parlamento Europeu, em Estrasburgo, de forma sorridente e descontraída, alguma memória histórica que vou tendo… fez-me recuar séculos. E imaginei os Sumos Pontífices de épocas passadas, não a serem recebidos, mas a receberem – não no estrangeiro mas em Roma – com toda a pompa do seu antigo status, os príncipes europeus que lhe iam prestar homenagem. E pedir conselho… ou receber admoestações…

Centro do mundo cristão, a Sé de Pedro fazia então coincidir, em si, poder religioso e poder temporal, sendo o Papa o grande árbitro de disputas, tanto políticas como dogmáticas, tanto diplomáticas como teológicas.

Competia a cada pontífice sem o saber – só o soube através de Matteo Ricci… – com uma outra visão do mundo, a mesma que, nos antípodas, se inspirava no conceito paralelo do “mandato do céu” em torno do qual se organizava espiritual, social e politicamente, um quarto da humanidade.

O sistema católico-romano era assim uma ordem europeia que se tinha por sistema mundial que não era. E que assentava na concepção da soberania de direito divino, sendo o pontífice o primeiro suserano entre suseranos, mas essencialmente o delegado de um poder mais alto, pois a autoridade suprema residia em Deus.

Depois de muitas dissensões, de muitos debates de ideias, de muitos conflitos políticos e religiosos, de revoluções e outras rupturas mais ou menos radicais, de muita evolução científica e técnica, que restos nos sobraram para construir a contemporaneidade?

 

Europa: sociedade fragmentada

Com o percurso que fizemos todos, os do nosso tempo, nos planos cultural, de costumes e das ideias, dificilmente imaginamos uma verdade imposta e uma justiça política que tantas vezes a servia ou que, melhor ainda, dela se servia. Mas prossigo, com essa ressalva em mente.

Perdida a sua unidade e emancipados os filósofos de todas as correntes do pensamento, a Igreja da Europa foi aceitando, mais ou menos resignadamente, o papel de actor-entre-muitos, no debate de ideias sobre a definição do próprio projecto europeu, isto é, do modo europeu de se coexistir por entre diferenças.

O discurso pluralista abria-se assim á inevitabilidade de outros dogmas e de outros clichés. E pessoas mais cultas ou, pelo menos, melhor informadas, numa sociedade que dessacralisou quase tudo, não tardaram a construir outras certezas, pois o ser humano não prescinde de mitos e do sagrado. Donde terem-se fabricado outros mitos e outros sagrados.

No plano da sociedade, esta evolução teve como resultado um tecido social fragmentado, com a noção cada vez mais evidente de que a multiplicação das escolhas individuais, em todos os domínios, não significa necessariamente o progresso do todo social. Em que continuamos a ter que estar inseridos, sem opção.

Se o ser humano não é uma ilha, não se deixou apesar disso de construir a Europa social como um gigantesco arquipélago, onde parece mal falar de caridade, porque é conceito “da Igreja”, transferindo-se para os cofres cada vez mais vazios do Estado Social o que a fraternidade moribunda já não assegura.

 

A voz da consciência universal

Toda a gente sabe, no fundo, que o Papa não é europeu, não exclusivamente quanto à sua origem geográfica, mas sobretudo quanto à extensão do seu múnus. E dirigindo-se à Europa, o Papa dirige-se de novo ao mundo, neste contexto em que tudo está ligado a tudo.

Num certo sentido, o modelo de sociedade para que a Europa evoluiu concentra em si todas as esperanças e decepções que o desenvolvimento económico produziu, desde as novas margens de liberdade no plano da cidadania, até às novas ou velhas formas de escravidão psicológica ou outra, desde o consumismo como fim em si até ao cinismo com que se aceitam as desigualdades que são geradas pelas formas mais evoluídas do capitalismo global.

Direitos Humanos, direitos dos trabalhadores, condições do trabalho… e o Santo Padre enumerou os problemas de um continente que envelhece e se resigna…

 

Turquia: uma voz para além do Bósforo

Aos confins da Europa vai o Papa Francisco, o peregrino, falar a esses irmãos muçulmanos que, acalentando em si os mesmos sonhos de paz e de concórdia, veem tais sonhos desfeitos pela tempestade que vem do deserto, para além do Bósforo. Tempestade e ódios fratricidas. De sonhos de domínio de outras eras que teimam em ressurgir na mente intoxicada de jovens de vinte anos. Jovens formatados para combater por um Deus cruel e vingativo. E nessa terra turca onde germinam as contradições, como plantas de um jardim espontâneo, o peregrino vai pois visitar irmãos da mesma Fé e de Fé diferente. E seus vários lugares de oração, da Basílica à Mesquita, com um abraço fraterno que mesmo no seu próprio campo muitos não compreenderão inteiramente. Mas é recebido o Papa, desde logo, na morada mais emblemática do poder temporal e das suas ambições. O palácio de Erdogan. O palácio dos mil quartos. Numa antecipação desse outro – mesmo – império que ressurgirá um dia, restabelecendo então, para sempre, a ordem natural de uma Turquia dominadora.

Para usar uma expressão de autor muito citado outrora e agora algo olvidado, este devaneio é verdadeiramente uma doença infantil da Humanidade! Incurável, pelos vistos!

‏O Vaticano bem tentou evitar o palácio. Mas as regras ditadas pelo anfitrião acabaram por prevalecer…

‏E é nesse quadro de ostentação e luxo insólitos que o peregrino fala de dor, sofrimento, esperança e reconciliação. E da pobreza extrema dos refugiados de guerra, os vizinhos sírios.

 Carlos Frota 

Universidade de São José

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