Descendentes de náufragos
Na vizinha aldeia de Lambesu, As Rasman tivera a amabilidade de me apresentar a uma família onde os genes lusos se mantinham quase intactos, apesar do correr dos anos. Na filha, então, loura e de pele branquíssima, a evidência era surpreendente. Reunidos para a retrato, mãe e filhos, mais pareciam aldeões de uma qualquer terreola da raia transmontana.
Reconheci de imediato a mulher, anos antes fotografada pelo meu amigo e historiador António de Maues Collaço, a quem devo o conhecimento da existência dos “portugueses de Lamno”.
Semanas após a tragédia, as notícias mencionavam o sobrevivente “português” Jamaluddin Putih, pescador de 40 anos, em plena faina piscatória na altura do maremoto. Era muito possível que o chefe dessa família fosse Putih, que na altura da minha visita também se encontrava no mar.
Falou-se ainda de Cut Pudo, uma idosa de oitenta anos, que teria percorrido uma centena de quilómetros até Banda Aceh. Profundamente traumatizada pelos acontecimentos, sofrera de amnésia e acreditava ser Siti Hawa, que na língua local significa Eva, a primeira mulher, de acordo com as monoteístas religiões do Livro. Tal assunção, porém, entrava já no domínio dos mitos e das lendas que surgiram na sequência do tsunami, tal como a lenda da areia movediça, à falta de documentos coevos, explicava a existência dos “portugueses de Lamno”.
Apesar de os contactos com o Achém terem sido frequentes desde 1509, não há documentos comprovativos da fixação de portugueses na região de Lamno. Porém, para além da miscigenação que foi acontecendo ao longo dos séculos – e nesse sentido é errado dizer que a comunidade desapareceu por completo, já que os seus membros se encontram espalhados pelo arquipélago – outras heranças lusas subsistem no Achém de hoje.
O dialecto achenense contém diversas palavras de origem portuguesa, tais como sítio, santo, nanas (ananás), kaldu (caldo), karantina (cantina), lepra, pasta, kebaya (cabaia), karambol (carambola), arloji (relógio), dadu (dado).
O bolo-mármore e o rolo de pão-de-ló, designado bolo roti, esse, certo e seguro, são um legado gastronómico bem lusitano.
No domínio lúdico, chamo a atenção para o pião, de madeira de ébano e crina de cavalo. A variante que se joga no Achém é a do pião de nica, como vem explícito num folheto turístico: “Longer circling and kick each other until is broken”.
A par das competições de papagaios de papel e das corridas de canoas e de cavalos, eram assaz populares as lutas de touros. Esses combates, «para fazer com que os touros comam», decorriam nos intervalos dos jogos de futebol e de outras festividades, não faltando quem atribuísse tais singulares distracções à passagem dos portugueses.
Toda a costa devastada pelo maremoto de 2004 acolhia pequenas cidades adormecidas, habitadas essencialmente por achéns, mas também por javaneses, menancabos, bataques, bugis, chineses e pelos referidos luso-descendentes, resultado ou não de naufrágios (foram vários) ocorridos ao longo dos séculos XVI e XVII num oceano notoriamente traiçoeiro. Não foi por acaso que os lusos argonautas designaram Ilha do Engano àquela que ainda é hoje conhecida como Pulau Enganno.
Entre esses naufrágios, conta-se o da nau portuguesa São Paulo, em 1561, que esteve na origem do relato presencial de Henrique Dias, boticário de D. António Prior do Crato, que viria a ser incluído, com algumas alterações, na História Trágico-Marítima de Bernardo Gomes de Brito, cuja primeira edição em Lisboa data de 1735.
Numa carta enviada aos seus superiores de Coimbra, o jesuíta Manuel Álvares inclui três ilustrações que mostram pormenorizadamente o ilhéu onde se deu a arribada e a foz dos rios que conduziam ao interior do reino de Menancabo, assim como os nativos, respectivas casas e embarcações, e a luxuriante vegetação. Esses desenhos terão sido, muito provavelmente, a primeira representação de samatrenses feita in loco por um europeu.
Não podemos esquecer ainda os relatos pormenorizados e fidedignos de Fernão Mendes Pinto, incluídos na “Peregrinação”, das suas deslocações aos reinos do Achém, de Aru e dos Batas, também conhecidos como bataques.
Um outro boticário, Tomé Pires, foi o mais destacado cronista no relato da história e das tradições, orais e escritas, de toda aquela região à data da chegada dos portugueses. Pela riqueza das informações nela compiladas, a “Suma Oriental” é hoje uma fonte de estudo imprescindível. De acordo com Tomé Pires, ao longo da costa, entre a baía de Kuala Daya e a boca do rio de Aru, alinhavam-se «dez unidades políticas diferentes».
Na sua obra “O Domínio do Norte de Samatra”, o historiador Jorge dos Santos Alves lembra que «estas unidades políticas controlavam na maior parte dos casos apenas os estuários dos rios em cujas margens estabeleciam as suas capitais».
Quais terão sido as consequências da tragédia em Natal, povoação costeira onde as naus chegaram a 25 de Dezembro de um ano qualquer de Seiscentos? Ou em Barus, onde se pode ouvir ainda hoje música tradicional local com raízes minhotas? Barus era tributário do Achém e funcionava como porta de entrada para os reinos auríferos, quase míticos, dos menancabos e dos bataques, que se mantiveram animistas até há bem pouco tempo e sempre opuseram uma resistência tenaz aos achéns, procurando, por isso, a aliança e protecção militar dos portugueses.
A escassez de relatos da época semelhantes aos atrás enunciados envolvia toda essa região montanhosa num espesso manto de mistério.
Joaquim Magalhães de Castro